Adeus fogaréu. A colheita da cana-de-açúcar na palha crua, efetuada sem queimada, deverá atingir 90,0% nesta safra paulista. Funcionou exemplarmente o Protocolo Agroambiental assinado, em 2007, entre o governo de São Paulo e o setor sucroalcooleiro. O ajuste de conduta, negociado, superou a lei, impositiva. Ponto para a conciliação.
Tudo começou quando, eleito governador, José Serra me convidou para assumir a Secretaria Estadual de Meio Ambiente. Discutindo nossas prioridades de governo, me instigou a encontrar uma solução para as queimadas em São Paulo. Pensava-se, inicialmente, em propor à Assembleia Legislativa uma modificação da Lei 11241/02, que regula a matéria, antecipando seus prazos que permitem a prática do fogo no canavial até o longínquo ano de 2031. Fui estudar o assunto.
Segui a pista dos inúmeros "protocolos" que haviam se firmado, mundialmente, sobre a questão ambiental. Eles inauguravam um estilo de governança que promovia o engajamento dos envolvidos (stakeholders) no processo de mudança. Parafraseando Joelmir Beting, em ambientês isso significava abandonar a ideia tradicional, e policialesca, do "comando e controle", acreditando-se no convencimento e na educação ecológica. Inspirado nesse raciocínio, procurei o Eduardo Carvalho, então presidente da União da Agroindústria Açucareira (ÚNICA).
Tenaz, ele acreditou na possibilidade do compromisso mútuo, preferindo-o à pendenga legislativa. Sua disposição em ajudar como interlocutor do processo me animou. Na sequência, consultei o João Sampaio, recém-indicado para a Secretaria Estadual da Agricultura. Sempre contemporizador, ele topou ombrear comigo nessa batalha. Confiante, voltei ao Serra, e dele recebi o aceite deste caminho de solução. Nasceu assim o inédito Protocolo Agroambiental do etanol verde.
Formulado tecnicamente, em conjunto com o setor sucroalcooleiro, as diretrizes básicas do Protocolo antecipavam o prazo final das queimadas, nas regiões planas, propícias à mecanização da colheita, de 2021 para 2014. Nas áreas inclinadas, acima de 12º, e para os pequenos fornecedores de cana, se permitiria queimar até 2017. Fomos além. Era importante também assegurar a recuperação das matas ciliares dentro dos canaviais e, ademais, conseguir uma redução no consumo industrial de água. Tudo acabou colocado no papel. Pauta de compromisso.
Os usineiros insistiam, com certa razão, em ver facilitado o financiamento das onerosas máquinas, necessárias para colher a cana crua. É importante entender essa questão. Bota-se fogo na palhada da cana para facilitar o corte manual dos colmos, feito com afiados facões. Sem a queimada o trabalho manual é difícil, lerdo, mais perigoso. Fora o medo das cobras escondidas nas touceiras.
Por isso, na discussão sobre o Protocolo, o desemprego virou preocupação. Cada colheitadeira de cana substitui cerca de 80 boias-frias no corte do canavial. Eliminar a queimada não seria, sob o ponto de vista da mão de obra, condenar milhares de famílias ao abandono, destituídas do trabalho na cana de açúcar? Só havia uma saída: investir na requalificação profissional dos trabalhadores, preparando-os para assumirem funções mais nobres, como operadores de máquinas, mecânicos e auxiliares. Esperava-se, assim procedendo, que a demanda de mão de obra especializada ajustasse o mercado, elevando inclusive os salários no campo. Foi o que, no decorrer do tempo, aconteceu, embora levas de cortadores de cana tenham, sazonalmente, deixado de migrar do Nordeste para São Paulo. Ocuparam-se em suas origens.
Articulado dentro do governo, acertado com os empresários da cana, aceito pelos sindicatos, o Protocolo Agroambiental conseguiu elevada adesão em seu lançamento. Ajudou uma sacada: definiu-se que o cumprimento das metas ambientais seria atestado com um "certificado de conformidade", documento de fé pública que premiaria a boa conduta ambiental das usinas e destilarias. Virou objeto de desejo na competição setorial, criando um movimento positivo rumo à sustentabilidade. Hoje, após sete anos, comparando-se com o cenário anterior, estabelecido na lei estadual, deixaram de ser queimados 7,2 milhões de hectares de lavoura. Em termos de emissão de gases de efeito estufa (GEE), a redução equivale à retirada de 77,5 mil ônibus rodando um ano inteiro nas ruas da capital.
No mesmo período, precisamente 299.038 hectares de matas ciliares, estabelecidas ao redor de córregos e brejos, junto com 9.300 nascentes, foram compromissados segundo os requisitos do Protocolo. Tais áreas, georeferenciadas para servir à fiscalização por satélites, engrossaram a proteção da biodiversidade. Na agenda azul, o avanço tecnológico e as boas práticas de fabricação permitiram enorme redução no consumo de água da agroindústria: por tonelada de cana processada, o índice caiu de 5 m³/t para 1,18 m³/t. Sensacional.
Evidentes são os ganhos socioambientais obtidos com a estratégia. Curiosamente, porém, outros problemas surgiram. A palhada da cana, antes queimada, ao se acumular no solo, reduziu a insolação nas gemas da soqueira. Esse fenômeno afetou a rebrota das plantas para o ciclo seguinte da lavoura. Alterou-se também a dinâmica das pragas. Os insetos, antes torrados no fogo, passaram a se reproduzir sem restrição, a exemplo da cigarrinha das raízes (Mahanarva fimbriolata). Pesquisas agronômicas tentam superar os novos desafios.
Assumir compromissos mútuos: essa é a grande lição do Protocolo Agroambiental em São Paulo, parceria que pavimenta o caminho do futuro sustentável no campo. Não foi o chicote da lei, mas a crença na boa fé humana, que acabou com o carvãozinho da cana.