Na semana que se comemorou o meio ambiente, a sociedade foi lembrada da importância de cuidarmos da natureza. Essa necessidade de chamar a nossa atenção revela o quanto a humanidade distanciou-se dela, ignorando a realidade de sermos apenas mais um dos componentes do todo!
Não se trata de demonizar as “conquistas” humanas que ajudaram a este distanciamento: uma sala com ar condicionado num dia de calor é algo que poucas pessoas deixarão de aproveitar em troca de suar naturalmente “em bicas”. O importante seria recuperar a noção de pertencimento à teia da vida, pois esse posicionamento vem em nosso próprio benefício, ao permitir uma relação mais harmoniosa com a natureza. Usando o mesmo exemplo, seria ter um ar condicionado que funciona com energia fotovoltaica, ajustado para uma temperatura de conforto térmico civilizada e que a mantém eficientemente apenas enquanto necessário, abrindo as janelas quando não mais fizer diferença.
Outra faceta interessante desta questão é que, quanto mais fisicamente longe dos ambientes naturais, mais as pessoas ficam vocais e espetaculosas nas causas em prol da fauna e flora. Os militantes ecologistas radicais parecem vir da cidade. O vivente da área rural, com seu horizonte mais largo, o pé na terra e a trilha sonora de sapos, grilos e pássaros, tem uma agenda ambiental mais serena.
Isso não deveria ser assim, pois ambos têm a mesma total dependência da boa saúde da nossa natureza para poderem continuar deixando suas trilhas de Homo sapiens na Terra. Todavia, não é difícil perceber que as contas dos desequilíbrios que estamos promovendo ao longo da nossa existência chegam primeiro a um deles e, obviamente, a quem está mais perto.
A primeira iniciativa para defesa florestal, o Código Florestal de 1934, confirma essa tese. Ela não visou propriamente as matas, mas ter madeira a uma distância próxima o suficiente para viabilizar seu uso na rotina das fazendas. Esse fato, desbotado pelo tempo, ilustra magistralmente como, mesmo para algo tão óbvio como ficar sem madeira por colocar toda a mata abaixo, foi tão difícil de perceber o erro que se cometia. Ele mostra a importância de um dos “serviços ambientais” oferecidos a nós pela natureza, no caso madeira para nossas construções, para gerar energia e seus demais múltiplos usos.
Algumas décadas depois, nas asas da contracultura, com muita inspiração hippie, o movimento ecológico floresceu, ganhando escala ao ser impulsionado pelos fatos que, então, as pessoas começavam a acompanhar a cores em seus lares: poluição do ar, mortandade de peixes dos rios, enchentes homéricas, desertificação, etc..
Apesar de ainda hoje a ecologia guardar traços desse caldo de cultura alternativo, foi graças a um sólido desenvolvimento científico e ao aproveitamento de novas tecnologias, como os satélites, que hoje temos competência para fazer previsões mais acertadas e suficientemente assustadoras para nos estimular a encontrar caminhos menos destrutivos de progresso, de maneira que ele se sustente por muito tempo...quem sabe para sempre. Enfim, o tão almejado desenvolvimento sustentável!
Por exemplo, temos hoje conhecimento da enormidade de benefícios que as matas nos trazem e de quanto sua ausência é capaz de alterar o ambiente ao redor e além. Assim, há mais iniciativas de defesa, como as reservas ecológicas, a reserva legal nas propriedades rurais e uma preocupação da sociedade com o verde como um todo.
Recentemente, as exigências de reserva legal nas propriedades rurais privadas estiveram ameaçadas por emendas parlamentares que pretendiam relativizá-las ou, até, extingui-las. Entre os argumentos para isso, colocou-se a questão da liberdade do proprietário fazer o que bem entender com o que é seu e quanto se perderia em geração de renda deixada de ser produzida nas áreas protegidas pelo “Código Florestal” que, pela enormidade da área envolvida, resulta em uma estimativa recheada de zeros depois do cifrão.
O primeiro argumento vai contra o ordenamento jurídico do país, uma vez que a posse da terra depende do cumprimento de sua função social, conforme elencado no “Estatuto da Terra”, decretado em 1964 pelo presidente Castelo Branco que, além de exigir níveis satisfatórios de produtividade e seguir as leis trabalhistas, também assegurar a conservação dos recursos naturais.
O atraente segundo argumento é simplista. É como quando fazemos a conta do custo do pastel que acabamos de comprar e a margem estabelecida pelos nossos cálculos mentais faz do pasteleiro um milionário em potencial, em contraste com sua modesta realidade. Entre as várias falhas desse exercício de estimar a renda do pasteleiro tem a questão de escala. Na nossa mente, se ele tem margem de R$3,00 por pastel que vende a R$3,50, ele poderia ganhar R$3 mil por dia, equivalente a um faturamento de mais de R$1 milhão por ano, bastando que vendesse mil pasteis por dia.
É o mesmo com os trilhões potenciais das áreas protegidas: A priori teríamos que ter mercado para essa produção extra, caso contrário, o resultado seria uma queda de preço por excesso de oferta que poderia, não só inviabilizar a produção nas novas áreas, mas em todo país. Seria como ter os mil pasteis num dia, mas para vender para um mercado que demanda apenas 100. Não estamos considerando o desafio que teríamos ao expandir tanto a produção, como se teríamos fertilizantes para toda área ou capacidade de transporte e tantos outros ligados ao aumento de demanda por bens e serviços.
O outro problema de extinguir as reservas seria o mesmo resolvido em 1934: ficar com serviços ambientais comprometidos. A eliminação de grandes áreas protegidas transformadas em áreas de produção deve levar à redução das chuvas e da umidade do ar, ao aumento de pragas e doenças, pela falta de inimigos naturais, à menor infiltração de água por área, reduzindo a recarga dos aquíferos e corpos d´água e vários outros problemas, como a falta de polinização. Portanto, o agravamento das condições ambientais poderia ser um grande gargalo para manutenção dos índices de produtividade (por exemplo, por uma redução na produção pela falta de chuva), bem como das margens obtidas (por exemplo, pelo aumento dos custos de produção devido a maior necessidade de aplicações de defensivos) e o esperado ganho financeiro poderia estar bem longe do esperado, ao mesmo tempo em que teríamos muitos novos problemas ambientais para resolver.
Todavia, o mais interessante é que a manutenção das áreas protegidas traz uma grande vantagem embutida: ela força a verticalização da produção, ou seja, aumentar a produção por área. Essa intensificação, se feita com base em práticas sustentáveis, tem muitas vantagens, desde a óbvia menor necessidade de abertura de novas áreas, passando pela diluição de custos fixos e redução de custos gerenciais, até a valorização da terra em bases reais.
Das várias formas de intensificar, o grande destaque no Brasil vai para as integrações entre as atividades agrícolas, de pecuária e de silvicultura. Hoje elas já representam cerca de 15 milhões de hectares e com viés de alta, graças a complementariedade e sinergia que há entre elas. Bem no cerne do sucesso das integrações está a recuperação do carbono (C) no solo devido, principalmente, a incorporação deste pelo acúmulo e degradação das raízes das forrageiras tropicais.
E qual o motivo do C ser tão importante assim? Ele está ligado ao teor de matéria orgânica do solo, que aumenta a retenção de água, a fertilidade, a eficiência das adubações e, ao ajudar a formar e manter os agregados do solo, melhorar sua estrutura e porosidade, aumentando a eficiência produtiva e reduzindo a erosão. Enfim, um pacote de benefícios que são fatores de produção ou influem diretamente no processo produtivo (sem contar os benefícios ambientais do sequestro de C).
Agora imaginemos que aquela pastagem implantada num sistema de integração seja, em seguida, usada exclusivamente para pecuária em dois cenários diametralmente opostos: um em que será bem manejada, perenizando a produção e, no outro, extensivo, rumo à degradação. Na primeira opção, considerando a média dos solos brasileiros, devemos ter por vários anos aumento dos estoques de C do solo até um ponto de equilíbrio máximo. Na segunda, a perda até um ponto de equilíbrio inferior. Não é muito difícil imaginar cada uma dessas paisagens e qual fazenda você gostaria de ser o dono.
A intensificação agropecuária feita dentro da técnica é virtuosa e torna o modelo das áreas protegidas atraentes também por forçarem que ela ocorra. Opostamente, a lógica de acabar com as reservas seria “horizontalizar”, ou seja, fazer menos com mais, “desintensificar”. É escolher o caminho da perda de carbono do solo, como descrito acima.
Há, portanto, no modelo das reservas uma feliz junção de circunstâncias: ao mesmo tempo em que, ao intensificar, geramos mais valor para a terra, acumulando C, podemos avançar no melhor conhecimento sobre as riquezas das nossas florestas, de forma a tirar maior proveito delas no futuro. Especialmente, evitar a perda de oportunidades que a nossa busca por resultados de curto prazo pode provocar, como no caso da perda de biodiversidade.
Assim, se em 2069 for isolada a molécula do antibiótico mais poderoso de todos os tempos graças a um fungo restrito àquela determinada reserva florestal, imagine o alívio de quem lembrar que uma decisão política em 2019 poderia ter arruinado com essa fonte. Para quem achar que esse exemplo seja conversa para boi dormir, o fato é que já usamos vários medicamentos cuja origem são moléculas da nossa biodiversidade e há resultados de pesquisas muito promissores nesse sentido1.
Um ponto importante é que ainda temos locais nos quais o desmatamento pode ser feito legalmente e, nesse caso, é importante que seja dada toda a condição para essa área ser incorporada ao setor produtivo. O desmatamento zero, por obrigação, deve ser o ilegal. É conveniente o “desmatamento zero absoluto” para quem já está num local desenvolvido, uma vez que não é ele que tem que abrir mão dos valores potencialmente gerados desse novo empreendimento, num local perdido no mapa, desesperadamente precisando de oportunidades para quem lá vive.
Algo que parece ser um grande desafio em toda essa questão ambiental é, mesmo, que os diversos envolvidos, especialmente produtores rurais e sociedade urbana, estarem ainda mais separados em ideologia do que fisicamente. O esforço de ambas as partes para entenderem suas motivações e limitações (essas especialmente do lado da produção) poderia facilitar soluções inteligentes, como, por exemplo, pagamento de serviços ambientais para determinadas propriedades que atendessem critérios que as colocassem efetivamente como mais do que fornecedoras de alimentos e outros insumos para a cidade.
Uma forma de ilustrar bem essa questão de eliminar as reservas nas fazendas seria pensar qual o motivo do velocímetro do carro ter tanta marcação de velocidades que nunca a maioria das pessoas vai usar. Um dos motivos é porque há a lei, mas, digamos que fosse abolido o limite de velocidade. A vantagem é que as pessoas poderiam chegar antes em seus destinos, o vendedor atender mais clientes, o taxista fazer mais corridas e assim por diante. A desvantagem é que muitos não mais chegariam: dirigir usando todo o velocímetro pode ser mais divertido e emocionante, mas também é muito mais letal. Produzir nas áreas restritas poderá aumentar a renda, mas talvez leve o “caminhão da produção” a capotar. O motorista, no mínimo, fica sem dinheiro. O destinatário da carga, morre de fome.
1 Um bom exemplo é essa matéria, “Aché: Aprender com o que a natureza ensina”: http://cnpem.br/industria-farmaceutica-e-o-2o-setor-que-mais-investe-em-inovacao-no-brasil/