Você sabe o que é “multipropriedade” em imóveis rurais? Sabe se existe diferença entre um condomínio de proprietários convencional e a multipropriedade? Destas perguntas surgem esclarecimentos importantes de um interessante instrumento jurídico que pode auxiliar os investimentos no agronegócio.
Mas não basta apenas esclarecer este instrumento jurídico de forma didática, pois sabemos que quando se fala em direitos há muitas situações hipotéticas, o famoso “e se...” e as respostas que terminam em “depende...”, por isso a criatividade jurídica necessita ser exercitada para antever estas situações, como daremos alguns exemplos neste texto, onde a legislação da multipropriedade se cruza com questões sucessórias, tributárias, bancárias e ambientais, dentre outras.
Esta novidade permite a aquisição da propriedade em forma condominial e pode criar novas possibilidades de utilização ao imóvel rural, como também o compartilhamento de economia para solucionar os elevados custos dos imóveis e de sua utilização.
A ‘inovação normativa’ é de 20 de dezembro de 2018 quando foi publicada a Lei Federal no. 13.777 fazendo alterações no Código Civil e Lei de Registros Públicos para validar a legalidade deste “parcelamento temporal do imóvel”, também conhecido em legislações de outros países como “time sharing”, ou seja, o compartilhamento pelo tempo, legalizado por países como Estados Unidos, França, Espanha, Itália (proprietà spa-zio-temporale) e Portugal, os quais começaram a aplicar tal instrumento em imóveis de lazer.
E quando é dito ‘validar a legalidade’ significa que este instrumento já era utilizado antes de sua expressa previsão em lei, admitido em muitos casos julgados pelos tribunais e faltava, portanto, segurança jurídica que foi suprida com a nova legislação. Cito como exemplo o Recurso Especial no. 1546165/SP, de relatoria do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça em 24/04/2016 que resume muito do que foi regulamentado e a maior parte do que se apresenta nesta oportunidade.
Foram incluídos 20 artigos no Código Civil e cinco novos parágrafos e alíneas na lei de registros públicos (Lei no. 6015/1973), para permitir a instrumentalização e o registro da multipropriedade.
A multipropriedade ou “time sharing” é positiva, embora existam muitas convergências de outras leis passando pela multipropriedade, o que será respondido de agora em diante pelo legislativo, escritórios especializados e pelo judiciário como o exercício da multipropriedade por estrangeiros, as responsabilidades ambientais, tributárias, contratuais, bancárias e gestão das obrigações jurídicas e gestão de cadastros da propriedade rural .
Em resumo, os conceitos jurídicos a serem compreendidos são: multiproprietário sendo o titular da unidade periódica; unidade periódica sendo a coisa física considerada apenas em uma fração de tempo do ano; direito real de propriedade periódico sendo o vínculo jurídico entre o multiproprietário e a unidade periódica; e condomínio em multipropriedade ou apenas multipropriedade sendo a situação jurídico-real de uma coisa estar vinculado a unidades periódicas.
De maneira ainda mais resumida, multipropriedade é o direito de propriedade sobre uma unidade temporal periódica do imóvel.
Embora isto já viesse acontecendo em alguns casos pelo país, somente no final de 2018 foi reconhecida por lei esta possibilidade, aplicável tanto aos imóveis urbanos como aos imóveis rurais, mas que no caso dos imóveis rurais é necessária muita atenção dadas as peculiaridades da atividade agrária e do imóvel rural, devido ao ciclo agrobiológico.
E como acontece este compartilhamento temporal do imóvel entre multiproprietários?
Não muito diferente do condomínio convencional já existente na legislação brasileira, onde todos são donos ao mesmo tempo sobre todo o imóvel e exercem todos os poderes inerentes à propriedade (usar, fruir, dispor e reaver a posse), mas neste caso, implica também que os proprietários em condomínio não são donos ao mesmo tempo e exercem em tempos diferentes os poderes inerentes a propriedade de forma alternada, conforme estabelecerão no contrato de condomínio em multipropriedade, que será registrado no Cartório de Registro de Imóveis para dar conhecimento a terceiros.
No cartório, haverá uma “matrícula-mãe” com registro do condomínio multiproprietário e a criação de novas matrículas para as unidades periódicas, ou seja, matrículas autônomas para cada unidade autônoma.
Esta multipropriedade inclui as benfeitorias e equipamentos destinados ao uso do imóvel, com dever de todos em zelar por eles, sem que se confunda estes chamados “acessórios” com as regras da própria multipropriedade, pois não serão utilizados alternadamente, mas na mesma parcela de tempo que o imóvel como um todo, visto que benfeitorias do imóvel, pela sua natureza acessória, seguem o mesmo regime jurídico-real do imóvel.
Como a ideia do presente texto não é replicar exatamente o que descreve o Código Civil, onde se recomenda consulta para entender o funcionamento da multipropriedade, nesta ocasião vale saber que há um número máximo de titulares (52), com divisões das frações de tempo fixas e determinadas no período de cada ano ou então flutuantes, de forma periódica, respeitando direitos iguais a todos com prévia divulgação, senão também a possibilidade de mesclar o misto e o flutuante, mantidas as frações mínimas de dias seguidos durante o ano.
Assim como um condomínio convencional, esta multipropriedade fará assembleias para as deliberações e votações pertinentes, melhorias e outros assuntos, sendo possível ainda nomear um administrador para fazer a conexão entre os multiproprietário e a organização da manutenção e custeio do imóvel, sendo que todas as regras devem estar disciplinadas no contrato de condomínio multiproprietário e na lei.
Mas muito cuidado, pois quando tratamos de imóveis rurais, além da propriedade estar em regime de condomínio multiproprietário, durante determinada fração de tempo de um dos proprietários, pode ainda estar sob regime de arrendamento, parceria ou integração, contratos agrários típicos orientados pelo Estatuto da Terra, os quais também possuem prazos estabelecidos por lei se não forem bem esclarecidos em seus respectivos contratos e por isso todas estas regras devem ser colocadas de uma forma muito clara.
Um exemplo entre a legislação da multipropriedade e o Estatuto da Terra é a questão do direito de preferência, pois ainda que o Estatuto da Terra e seu decreto, prevejam em contratos agrários alguns direitos tidos como irrenunciáveis (artigo 13, I, Decreto 59.566/1966), como a preferência (artigo 22, Decreto 59.566/1966), é necessária muita atenção na elaboração dos contratos, já que a nova legislação afirma que não há necessidade de ser dado direito de preferência aos demais condôminos, excepcionalmente se houver determinação expressa na convenção condominial.
Outro ponto muito importante, por se tratar de imóvel rural e que por muitas vezes há tomada de crédito para desenvolvimento das atividades na propriedade, é a oneração do imóvel para deixá-lo como garantia e isto é possível, mas em caso de inadimplemento, o credor ficará restrito à fração de tempo daquele devedor para compensar a dívida, portanto, não há solidariedade entre condôminos multiproprietários pelas dívidas que cada um assumir.
Cada um responde por suas obrigações, inclusive com a eventual perda de sua fração temporal, em favor do credor.
É importante também saber que o imóvel multipropretário será indivisível, impossível qualquer ação de sua divisão ou extinção. Apenas poderá ser transferida com anuência dos multiproprietários na forma da lei e com as regras estabelecidas em contrato para sua extinção.
Interpretando em mais pormenores, há que se considerar ainda a hipótese de que, se um dos multiproprietários, em sua fração de tempo, utilizar para moradia da família, ainda que não seja este o objetivo da multipropriedade, mas que nesta situação, será impenhorável pela legislação que proíbe este tipo de situação (Lei Federal no. 8.009/1990), sendo possível a penhora apenas sobre o direito real de propriedade sobre a unidade periódica, como dito anteriormente, mas não sobre móveis e benfeitorias vinculados às demais unidades periódicas de modo indivisível.
No que diz respeito ao Imposto Territorial Rural, podemos interpretar a legislação no sentido de que, a multipropriedade criou um direito real de propriedade para cada multiproprietário, como já explicado no início do artigo e por isso, se o ITR tem como fato gerador a propriedade, que por sua vez está fracionada, cada multiproprietário responde pela dívida de ITR de sua unidade e não respondem uns pelos outros como devedores tributários solidários, considerando ainda que cada unidade possui sua própria matrícula.
Em outras palavras, cada unidade periódica representa um fato gerador próprio e cada multiproprietário é obrigado a pagar o tributo real relativo à sua unidade periódica.
Neste sentido, a própria legislação tributária (Código Tributário Nacional – CTN) traz solução ao caso, dizendo no artigo 110 que “a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias”.
Em mais um assunto onde a multipropriedade passa de maneira transversal, temos o planejamento patrimonial em vida, com efeitos ainda em vida utilizando o usufruto ou após a morte utilizando o testamento.
Temos visto diversas estratégias societárias e tributárias no agronegócio para otimizar a transferência de bens entre a família, como também para estruturas empresas familiares, assuntos ligados também ao direito sucessório, onde é importante comentar que em vida, os antecessores podem transferir o(s) imóvel(is) rural(is) da família por meio da criação da multipropriedade entre os sucessores/herdeiros, instituindo sobre esta propriedade um único usufruto para os antecessores sem qualquer impedimento legal, vinculando quotas-parte do direito real de multipropriedade ao direito de usufruto, a ser extinto com o falecimento (usufruto vitalício).
E, pensando no planejamento patrimonial com transferência após a morte, é possível que seja criado um testamento para instituição uma multipropriedade entre os sucessores, desde que este testamento possua todos os requisitos formais para a instituição do condomínio, limitado a indicar as unidades periódicas que caberão aos sucessores em relação a um imóvel e delegar a eles o dever de decidir sobre a instituição do condomínio em documentos complementares.
Aqui vai um alerta um pouco mais preocupante, porque, diferente de questões relacionadas à penhora, bens de família, crédito rural ou sucessão familiar, na responsabilidade ambiental, onde é possível individualizar responsabilidades, nas infrações ambientais temos situações já consolidadas pela legislação com interpretação dos tribunais e que refletem em todos os multiproprietários.
Quando se fala em responsabilidade ambiental no Brasil, admite-se três tipos de penalização: as administrativas (multas, embargos, apreensões), as penais (crimes) e as cíveis (reparação de danos ao meio ambiente, recuperação de áreas, etc.).
Nas infrações administrativas, como multas, embargos de áreas e atividades, apreensão de materiais utilizados em infrações, a chamada responsabilidade administrativa ambiental depende da identificação de quem causou a ação ou omissão que violou regras jurídicas de proteção ambiental (Decreto Federal no. 6514/2008). Da mesma maneira nos crimes ambientais, a chamada responsabilidade penal ambiental depende da identificação do autor do crime, bem como da culpa ou dolo. Nestas duas situações, apesar de ser um único imóvel rural com multiproprietários, cada qual a seu tempo, é necessária a identificação do causador do dano para ser individualmente responsabilizado.
E na responsabilidade civil ambiental, que faz com que o causador do dano pague indenizações por dano ambiental e recupere áreas atingidas por atividades ilícitas, podem ser aplicadas punições mesmo sem culpa, impondo-se o dever de reparação e indenização, no caso a todos os multiproprietários, independente de quem cometeu ilícitos ambientais na respectiva fração de tempo.
É possível concluir sob uma ótica bastante interessante que o direito de propriedade está mudando aquela concepção individualista do Direito Romano, reproduzido para o Código Civil de 1916, agora partindo para um contexto de limitação de seu exercício em benefício de uma finalidade econômico-social, avançando para atender relações humanas mais dinâmicas, modernas e eficientes quando possibilita a várias pessoas usufruir de um mesmo imóvel.
E nesta situação mudança de dinâmicas jurídicas, econômicas e sociais é que a multipropriedade permite otimização da função social da propriedade, compartilhamento de economia e eficiência de recursos aplicados nos imóveis rurais.
Como foi dito durante o texto, ao falar de legislação sempre existirão situações hipotéticas que começam com “e se...” e termina com “depende...” e que, de toda forma, são extremamente positivas para que, pouco a pouco, sejam esclarecidas todas as possíveis implicações da multipropriedade.
¹ PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS DE TERCEIRO. MULTIPROPRIEDADE IMOBILIÁRIA (TIME-SHARING). NATUREZA JURÍDICA DE DIREITO REAL. UNIDADES FIXAS DE TEMPO. USO EXCLUSIVO E PERPÉTUO DURANTE CERTO PERÍODO ANUAL. PARTE IDEAL DO MULTIPROPRIETÁRIO. PENHORA. INSUBSISTÊNCIA. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PROVIDO.
1. O sistema time-sharing ou multipropriedade imobiliária, conforme ensina Gustavo Tepedino, é uma espécie de condomínio relativo a locais de lazer no qual se divide o aproveitamento econômico de bem imóvel (casa, chalé, apartamento) entre os cotitulares em unidades fixas de tempo, assegurando-se a cada um o uso exclusivo e perpétuo durante certo período do ano.
2. Extremamente acobertada por princípios que encerram os direitos reais, a multipropriedade imobiliária, nada obstante ter feição obrigacional aferida por muitos, detém forte liame com o instituto da propriedade, se não for sua própria expressão, como já vem proclamando a doutrina contemporânea, inclusive num contexto de não se reprimir a autonomia da vontade nem a liberdade contratual diante da preponderância da tipicidade dos direitos reais e do sistema de numerus clausus.
3. No contexto do Código Civil de 2002, não há óbice a se dotar o instituto da multipropriedade imobiliária de caráter real, especialmente sob a ótica da taxatividade e imutabilidade dos direitos reais inscritos no art. 1.225.
4. O vigente diploma, seguindo os ditames do estatuto civil anterior, não traz nenhuma vedação nem faz referência à inviabilidade de consagrar novos direitos reais. Além disso, com os atributos dos direitos reais se harmoniza o novel instituto, que, circunscrito a um vínculo jurídico de aproveitamento econômico e de imediata aderência ao imóvel, detém as faculdades de uso, gozo e disposição sobre fração ideal do bem, ainda que objeto de compartilhamento pelos multiproprietários de espaço e turnos fixos de tempo.
5. A multipropriedade imobiliária, mesmo não efetivamente codificada, possui natureza jurídica de direito real, harmonizando-se, portanto, com os institutos constantes do rol previsto no art. 1.225 do Código Civil; e o multiproprietário, no caso de penhora do imóvel objeto de compartilhamento espaço-temporal (time-sharing), tem, nos embargos de terceiro, o instrumento judicial protetivo de sua fração ideal do bem objeto de constrição.
6. É insubsistente a penhora sobre a integralidade do imóvel submetido ao regime de multipropriedade na hipótese em que a parte embargante é titular de fração ideal por conta de cessão de direitos em que figurou como cessionária.
7. Recurso especial conhecido e provido.