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Azoto, o átomo de nitrogênio, e seu ciclo na pecuária

por Sergio Raposo de Medeiros
Sábado, 25 de fevereiro de 2023 -06h00


Vamos acompanhar, aqui, os caminhos de um átomo de nitrogênio (N), que vamos chamar de Azoto, como o N era chamado antigamente, desde a brotação da semente onde estava até o final do ciclo, passando por folha, rúmen e carne. Espero que todos curtam essa viagem!


A semente daquela gramínea, que continha o Azoto, foi plantada no solo bem-preparado. Se estivesse um pouco mais profunda, a falta de umidade poderia ser fatal ou um pouco mais para baixo, poderia não vencer o solo acima, tornando-se matéria orgânica do solo. Como estava na faixa ideal, recebeu calor e umidade na medida. A água foi absorvida e sua dormência quebrada. O amido, o polímero que é responsável por boa parte do seu peso, começou a se quebrar em seus monômeros, moléculas de glicose, fornecendo a energia que o embrião precisava para começar a formar as radículas e os folíolos que permitirão transformar-se em plântula. Os folíolos aparecem primeiro e seguem a captar a luz para não depender mais das reservas da semente. A radícula se desenvolve, criando as primeiras raízes, para começar a captar água e nutrientes do solo.


O Azoto, da semente, foi recrutado para fazer parte da clorofila, o pigmento que, dento de uma organela chamada cloroplasto, capta a luz do sol para produzir glucose, a partir do gás carbônico (CO2) e água. A glucose não é só uma fonte de energia, mas a precursora de todos os demais componentes que temos nas plantas, tanto os óbvios como as fibras (carboidratos fibrosos), as proteínas (enzimas, proteínas ligadas à fibra etc.) e a gordura (camada lipoproteica das membranas celulares), como outros compostos (metabólitos secundários) com funções variadas nas plantas, mas especialmente para dar sustentação e proteção contra inimigos externos vivos (pragas e doenças) ou não (geadas).


Aqui compensa lembrar que Azoto, como vários outros nutrientes, entra pela raiz, mas o composto que mais pesa em massa, o CO2, entra pela “boca” ou seja por aberturas abundantes na parte de baixo da folha, os estômatos (estoma = boca em grego), responsáveis pelas trocas gasosas das plantas. 


Com o CO2 e a fotossíntese, a planta expande suas “placas solares”, que são as folhas. O N é um componente que tem a característica de alta mobilidade na planta e o Azoto, até então na clorofila, foi recrutado para a expansão de uma folha. Assim, acabou participando da membrana de uma célula da parede celular, ou seja, ela virou N ligado à fibra. Agora era esperar pelo seu destino: ser ingerido por um animal forrageador ou senescer, morrer e voltar ao solo para ser degradado. Para não terminar o texto por aqui e torná-lo mais rico, Azoto não só foi ingerido, mas por um animal ruminante, que, com seus quatro estômagos, deixa a sua história bem mais movimentada do que se fosse ingerida por animais monogástricos (com apenas um estômago), como cavalos, porcos, galinhas etc.


Na bocada em que Azoto entrou no rúmen de um bovino, a folha em que ele estava foi brevemente mastigada, pois ruminantes têm, como estratégia, consumir os alimentos rapidamente e, mais tarde, remastigá-los, no processo lhes dá o nome: a ruminação. O ruminante tem a capacidade de retornar o alimento do primeiro dos seus quatro estômagos, o retículo, à boca para remastigar de novo, agora com bem menos pressa, pois, como presa que é, não estaria mais tão vulnerável como na hora em que comia.


O segundo estômago é o rúmen, mas, de verdade, retículo e rúmen não são anatomicamente bem separados, sendo comum chamarmos de retículo-rúmen ou simplesmente rúmen para se referir a ambos. Os outros dois estômagos dos ruminantes são o omaso e o abomaso. Este último, seria o análogo ao estômago dos monogástricos e o omaso seria um intermediário que teria como grande função absorver o excesso de água usada na verdadeira “dorna de fermentação” que é o retículo-rúmen, cheia de microrganismos especializados em fermentar, cujas condições que o bovino (hospedeiro) dá aos microrganismos são excelentes, com condições estáveis e favoráveis para eles degradarem os alimentos consumidos, especialmente os fibrosos, que é o futuro próximo do Azoto.


Após voltar da ruminação, o pedaço da folha, em que Azoto estava, apresentava quebras que expuseram tecido foliar interno, o que é muito importante, pois a principal degradação ocorre de dentro para fora. Bactérias e outros microrganismos colonizam o tecido e colocam suas enzimas para degradar os polímeros das fibras (celulose e hemicelulose, as mais abundantes) para suas unidades básicas, açúcares simples, em especial a glucose, que são fermentados para gerarem energia para os microrganismos do rúmen. Produzem, também, um lixo inservível (ácidos graxos de cadeia curta) para eles, mas que é fartamente aproveitado pelo bovino hospedeiro. De fato, os ácidos graxos de cadeia curta são a principal parte da energia que é usada pelo bovino hospedeiro. Outra pequena parte, que não pode ser aproveitada, vai embora pelos ares, quase toda pelo arroto (eructação): o famoso gás metano.


Como Azoto estava ligado à proteína da fibra, no momento que ela foi degradada, ele fica no meio ruminal, disponível para o ataque de outras enzimas que irão libertá-lo. Antes de estar livre, ele foi primeiro degradado ao aminoácido, a unidade básica da proteína, por uma protease. Já como aminoácido, uma deaminase fez com que ele voltasse a ser apenas um átomo de N. Todavia, mal se deu conta, já estava cercado por três hidrogênios, como uma molécula de amônia (NH3+), atravessando a parede do rúmen e entrando na circulação sanguínea. Contudo, NH3+ não é bem-vindo no sangue e, estando em nível que possa colocar o organismo em risco, ao passar no fígado, é transformada em ureia e excretada na urina.


Mais uma vez, porém, Azoto voltou à circulação e acabou sendo reabsorvido pelo rúmen. Ele ainda teve tempo de notar as leveduras que ficam na parede do rúmen, consumindo o oxigênio (O2) que vem do sangue e, dessa forma, ajudando o rúmen a permanecer um ambiente propício à fermentação anaeróbica, ou seja, sem O2.


O tempo no rúmen, todavia, não pode esperar e Azoto logo estava sendo novamente recrutado, agora, por uma bactéria ruminal celulolítica que o colocou novamente como componente da sua membrana lipoproteica. Nessa função, ele ficou por muitas horas, provavelmente até mais do que um dia, mas, de repente, percebeu-se sendo transferido para o omaso e, em seguida para o abomaso, onde começou a notar o trabalho novamente de proteases. Chegando no intestino delgado, mais proteases o fizeram voltar a fazer parte de um simples aminoácido e foi assim que ele foi absorvido pela parede do intestino delgado, mais uma vez para fluir pelo sistema circulatório.


Passando por um trecho de tecido muscular, Azoto foi de novo recrutado, começando mais um capítulo na sua epopeia. Mais uma vez ele se tornou componente de uma membrana lipoprotéica, mas, desta vez de uma célula adiposa que precisou reparar sua membrana. Ele já percebeu um certo aperto, pela gordura que preenchia quase toda a célula adiposa. Com o tempo, esse aperto foi ficando cada vez maior. Isso ocorria, pois o animal estava sendo terminado em um confinamento, acumulando gordura. Em poucos dias, estava no frigorífico, no pedaço de carne na bandeja do supermercado e na churrasqueira. Foi no calor da churrasqueira que ele transformou num composto de Maillard, aquela parte meio dourada, meio queimada e que dá aquele sabor especial aos alimentos. Infelizmente, por estar na parte da gordura, foi preterido por quem comia e acabou no lixo, o que poderia ser um fim um tanto injusto para tantos papeis importantes que teve. Surpreendentemente, numa virada da sorte, foi para uma compostagem que cujo destino foi adubar um campo de sementes de forrageira! Azoto teria mais uma chance de reviver sua história de vida!