No mês de janeiro poucas atividades do manejo sanitário estão previstas.
Um dos pontos chaves na prevenção contra leptospirose é a vacinação dos animais em risco. A vacina contra leptospirose não confere uma imunidade muito longa, mas para que as vacinações anuais das fêmeas (feitas antes do início da estação de monta) possam ter melhor resultado, é fundamental a vacinação das bezerras aos 5 meses de idade. Embora a leptospirose, que causa principalmente aborto, ocorra em rebanhos em todos estados brasileiros, o maior número de casos acontece nos situados na região amazônica, no Pantanal, nos vales úmidos do Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. Independente dessa diferente distribuição, recomenda-se a vacinação em todos os rebanhos nacionais.
Recomendo que, em janeiro, seja feito um “pente fino” na geladeira que armazena as vacinas e frascos abertos com medicamentos, como os antibióticos. As vacinas devem ser mantidas em temperaturas entre 2º e 8º C. Cansei ver vacinas veterinárias em geladeiras lotadas, abertas muitas vezes ao dia, ou com problemas na borracha vedadora. Todas essas condições elevam a temperatura para até mais de 16º C, podendo danificar as vacinas! Por outro lado, muitas geladeiras estão mal reguladas, o que leva ao congelamento das vacinas, diminuindo muito os resultados esperados, em especial em vacinas múltiplas, como as das clostridioses e as reprodutivas, para não falar na de brucelose, que é uma vacina contendo bactéria viva. Confira a temperatura interna com um termômetro e regule a geladeira; avalie a condição da borracha vedadora, que com o tempo vai ficando endurecida e vedando menos.
Nada como uma pistola dosificadora ”zero quilômetro”. Porém, com o tempo, ela vai ficando desregulada, e a borracha interna endurecida, pouco lubrificada e mal ajustada ao vidro, para não falar no aumento da contaminação. Pistolas assim, além de ficarem emperradas, injetam mais ou menos medicamentos do que você pretende aplicar. Janeiro é o mês de desmontar as pistolas, descontaminá-las, de acordo com a orientação do fabricante, lubrificá-las e possivelmente trocar as borrachas vedadoras velhas e endurecidas. Poucos proprietários e gerentes acompanham esse processo e geralmente delegam aos colaboradores, que nem sempre se preocupam muito com essas operações de manutenção e pedem novas pistolas, enquanto a maioria existente só precisa de um reparo. Em tempo de vacas magras, qualquer economia é bem-vinda...
Aproveite e dê uma olhada na qualidade das agulhas metálicas. Após um longo ano de uso, as agulhas para aplicação de vacinas e medicamentos podem estar tortas, rombas, desgastadas e muito contaminadas. Descarte aquelas imprestáveis; desentorte e afie as pontas das que ainda têm jeito e faça uma descontaminação especial mantendo-as por 10 minutos em água fervente.
Figura 1.
Limpeza e manutenção de pistola dosificadora.
Fonte: Enrico L. Ortolani.
Surto de botulismo em confinamento paranaense
No decorrer deste ciclo de engorda, foram registradas mortes de 18 bovinos em um grande confinamento do estado do Paraná. Os animais, de um lote único, tinham 21 dias de cocho e começaram a morrer quase que diariamente, com o seguinte quadro: apatia, evitavam se locomover, e quando o faziam, tinham bamboleamento (cambaleios) das “cadeiras”, como se estivessem bêbados. Caíam de quilha, em seguida de lado, parando de comer e beber. Os músculos dos braços e das pernas estavam praticamente paralisados, assim como o rabo (cauda) que se apresentava completamente sem movimento. A língua também apresentava paralisia (figura 2). Dependendo do caso, a morte acontecia entre 4 e 12 dias. Foram tentados pelos “leitores de saúde”, que acompanhavam diariamente o lote, vários tipos de tratamento, sem quaisquer resultados.
O veterinário que atendeu fechou o quadro como botulismo. Por coincidência, esse lote não tinha sido vacinado contra essa doença. Na busca dos motivos do surgimento de tal problema, o veterinário encontrou dentro do vagão de alimentação “blocos de ração emplastados” e com forte cheiro de material apodrecido, do qual se suspeitou-se que tenha sido a origem do problema (figura 3). Constatou-se também que a limpeza completa desse vagão não estava sendo feita. Ração rica em proteína, quando apodrece e se torna alcalina (perda de acidez), pode ser um bom meio de cultura para o crescimento de Clostridium botulinum, bactéria que pode produzir a quase sempre mortal toxina botulínica.
Na maioria dos casos de botulismo, a toxina é produzida em cadáveres apodrecidos de animais (aves, gatos, ratos etc.), que podem contaminar alimentos ou água. A toxina botulínica provoca uma severa paralisia muscular que mata a maioria das suas vítimas, por parada respiratória. Dentre as toxinas produzidas pelas bactérias do gênero Clostridium, sendo a do tétano, a toxina mais potente, podendo causar a morte com doses mínimas em comparação a quantidade da botulínica. Assim, quando essa última toxina é ingerida em expressiva quantidade pode causar morte, mesmo se o animal foi duplamente vacinado contra a doença.
Com isso, além da plena limpeza dos vagões de alimentação, todo o lote foi vacinado, interrompendo o surto.
Figura 2.
Bovino acometido por botulismo (paralisia de língua).
Fonte: Enrico L. Ortolani.
Figura 3.
Material emplastrado e apodrecido achado do vagão de alimentação.
Fonte: Enrico L. Ortolani.
Foi notícia nacional a grande quantidade de chuvas que atingiu todo o estado de Santa Catarina em outubro e novembro últimos. Num rebanho do planalto catarinense, um colega veterinário foi chamado para atender um surto de cerato- conjuntivite (“olho rosa”) em 10 bovinos jovens, que logo em seguida as fortes chuvas apresentaram o problema. Os animais, haviam sido desmamados e estavam num piquete juntos. Segundo relatos do criador, o quadro começou num garrote e rapidamente se alastrou para os demais. Um fato que chamou atenção foi a grande quantidade de moscas comum (Musca domestica) e moscas- do- estábulo (Stomoxys calcitrans) que estavam infestando os animais, inclusive pousando nos olhos para se nutrir das lágrimas e secreção ocular (figura 4).
O veterinário encontrou bezerros com as duas fases iniciais da doença (figura 5), e, graças às medidas tomadas, os doentes se recuperaram em cerca de 10 dias, e nenhum caso novo foi verificado. A primeira decisão foi isolar todos os doentes dos sadios, pois a cerato- conjuntivite é causada principalmente pela bactéria Moraxella bovis, que é altamente contagiosa, podendo ser transportada pelas moscas. A segunda medida foi o tratamento à base antibiótico específico, visto que muitos deles se tornaram resistentes, e anti-inflamatório. A última resolução foi o combate às moscas.
O veterinário constatou que o acúmulo de fezes bovinas no ambiente ao lado do curral, facilitava a postura das moscas. No período chuvoso e quente, as moscas se multiplicam mais rapidamente; por exemplo, a mosca doméstica se torna adulta, a partir do ovo, em sete dias na temperatura de 33º C e em 29 dias em 16º C. O colega sugeriu a retirada das fezes e a implantação de uma esterqueira, que favorece a fermentação das fezes e que leva à morte dos ovos e larvas das moscas. A rápida implantação dessas medidas já reduziu o número de moscas no ambiente.
A Moraxella bovis ataca mais os olhos, quando estes ficam lesados ou danificados, seja por contato com capins altos, quando a exposição à radiação ultravioleta (RUV) solar é máxima, (a RUV atingiu no período, no planalto catarinense, valor máximo de 13, numa escala que vai de 1 a 16, indicando condição extrema) e quando há muito pó e sujeira. O confinamento dos animais e a elevada presença de moscas espalham rapidamente a doença.
Na figura 6, vê-se a anatomia dos olhos. A bactéria inicia o ataque pelas membranas da conjuntiva, ou seja, pelo saco avermelhado interno das pálpebras que circunda o globo ocular, passando em seguida para a córnea (normalmente de cor escurecida), que recobre a “menina dos olhos”. Na fase 1 da doença, ocorre a inflamação dessas membranas, com o embaçamento (opacidade) da córnea; na fase 2, forma-se uma ferida (úlcera) neste local; na fase 3, a úlcera aumenta muito e forma um tipo de pus internamente; e na fase 4, o animal fica cego de vez (figura 5).
Figura 4.
Moscas atraídas pelas lágrimas e secreções.
Fonte: Reprodução Internet.
Figura 5.
Os quatro estágios da doença: opacidade (embaçamento) de córnea; presença de úlcera na córnea; expansão da úlcera e severa inflamação; cegueira (da esquerda para direita, de cima para baixo).
Fonte: Enrico L. Ortolani.
Figura 6.
Anatomia do globo ocular.
Fonte: Reprodução Internet.
Um veterinário acompanhou dois surtos de actinobacilose em rebanhos de cria e um de engorda, em Uruguaiana na região sudoeste do Rio Grande do Sul. A doença acometeu apenas bovinos adultos, com uma frequência de 1% a 3 % do rebanho, dependendo da propriedade. Coincidentemente, os bovinos das três propriedades estavam em pastagens de inverno – azevém (Lolium multiflorium), em fase final de produção, com presença de capim bem fibroso (figura 9). Quando chamado para atender os animais, os sintomas já tinham aparecido a pelo menos 30 dias. Os doentes se apresentavam com redução do apetite, emagrecidos, em relação aos demais animais sadios, com inchaço debaixo da mandíbula e com excesso de saliva (sialorreia) na boca (figura 8). Os gânglios (linfonodos) da região (submandibulares, pré-parotídeos e retrofaríngeos) estavam todos aumentados de tamanho, com perda de mobilidade, alguma sensibilidade, mas sem aumento de temperatura. Quando puxada a língua, esta apresentava menor mobilidade e alguma sensibilidade. O osso da mandíbula não apresentava nenhum inchaço ou aumento de volume.
Com estas informações, suspeitou-se de actinobacilose e optou-se por tratamento à base de iodeto de potássio, via oral e um antibiótico específico. Este tratamento resultou na completa volta do apetite já no 5º dia, e desinchaço da região no 10º dia, em todos os animais.
A actinobacilose é uma doença crônica causada pela bactéria Actinobacillus lignieresii, que está normalmente presente na boca e no rúmen, e que pode penetrar na língua pelas pontas duras de capins, espinhos etc. Daí se multiplica e forma pequenos abscessos em forma de grânulos nos tecidos moles na região submandibular e língua (figura 10). Essa doença é chamada de “língua-de- pau”, pois a língua se torna mais endurecida e com menor mobilidade quando puxada, mas segundo relatos, a maioria dos casos no RS, a língua está menos comprometida pela infecção que outros tecidos moles da região. No RS, a doença é frequente em bovinos que pastejam em restevas (restos de cultura) de arroz e de soja onde persistem pontas endurecidas de capins ou da cultura (figura 9).
Outra doença muito parecida com essa, é a actinomicose, que é causada pela bactéria Actinomyces bovis, que penetra a gengiva ou a língua, infecciona e espessa os ossos da mandíbula, formando no seu interior vários pequenos abscessos. Diferente, da actinobacilose, a actinomicose é mais difícil de ser tratada com os medicamentos tradicionais, tendo assim menor possibilidade de cura (prognóstico). Para cada caso de actinomicose que atendi no campo, ocorreram pelo menos sete outros de actinobacilose.
Figura 7.
Bovino com actinobacilose em pastagem de azevém.
Fonte: Tiago Galina.
Figura 8.
Detalhe maior do inchaço na região da mandíbula e da sialorreia.
Fonte: Tiago Galina
Figura 9.
Resteva de arroz permeada de capim.
Fonte: Enrico L. Ortolani.
Figura 10.
Alterações na língua e linfonodos da região mandibular
Fonte: David Driemeier.
Foi relatada a morte de pelo menos cinco bovinos da raça Nelore num confinamento em Mato Grosso, que estavam entre 8 e 12 dias de cocho, ou seja, ainda em período de adaptação. A maioria teve morte súbita ou estavam agonizando quando encontrados.
O veterinário que os necropsiou, descreveu externamente um grande aumento na região abdominal, inclusive, exposição de parte do prepúcio e inchaço na região (figuras 11 e 12). Devido a este achado, pensou-se inicialmente, que se tratava de cálculo uretral, mas nenhuma pedra foi encontrada na uretra, bexiga, ureter e rins. Na abertura da abdómen chamou atenção o enorme tamanho do rúmen, o qual aberto identificou-se acúmulo de massa viscosa esverdeada em todo órgão, como se fosse um amontoado de lodo (figura 13 e 14). Não foi encontrado qualquer acúmulo de gás na região superior do órgão, como normalmente se acha. Após análise detalhada dessa massa ruminal, percebeu-se que ela tinha um tipo de limo com microbolhas de gás no seu anterior, e que cresceu de forma semelhante a uma massa de bolo em que adiciona-se fermento.
No exame da dieta, verificou-se que a quantidade de grãos (sorgo moído) estava dentro do planejado para o período de adaptação, mas que a fibra oferecida estava abaixo do recomendado e provavelmente, pelo fato de ser misturada por longo tempo no vagão alimentador, a fibra por estar seca, estava muito triturada, quase moída, e, com grande percentual abaixo de 0,8 cm de comprimento. Pelos achados na necrópsia e com as informações da dieta suspeitou-se de meteorismo espumoso ruminal por grãos. Com o aumento de fibra na dieta e a correção no tempo de mistura, pararam subitamente de surgir novos casos.
Essa enfermidade nutricional é pouco diagnosticada, mas tem sido relatada em confinamentos paulistas e gaúchos. Identifiquei num desses confinamentos que o fator de risco (odds ratio), ou seja, a chance de correr é 3,3 vezes maior de ocorrer em gado Nelore, do que em cruzados ou taurinos. A sua origem pode estar ligada a alguns fatores nutricionais: como alto percentual de grãos na dieta; grãos altamente moídos ou peletizados; quantidade baixa de fibra; ou excesso de trituração ou moagem da fibra. Nesse caso mato-grossense os dois últimos fatores foram os causadores do problema.
Embora não se conheça completamente a origem da doença, sabe-se que bois que salivam menos têm maior chance de terem meteorismo espumoso. Um boi de 400 kg pode salivar até 160 litros por dia, e a produção de saliva é ainda maior quando a dieta contém mais fibras, desde que essa fibra seja de tamanho superior a 0,8 cm. Um experimento identificou que o mesmo boi de 400 kg reduz a salivação de 140 litros para apenas 50 l/dia caso o comprimento de fibra seja reduzido de 2 cm para 0,6 cm.
A saliva é muito importante, pois contém componentes que inibem a produção de espuma e a rompem, por torná-la mais frágil, no rúmen. Essa espuma é mais comumente produzida em dietas ricas em grãos, quando cresce a bactéria denominada Streptococcus bovis, que em determinadas condições, produz a espuma que pode matar. A espuma, que parece um limo, encapsula o gás produzido na fermentação, que não consegue se desprender do conteúdo ruminal, fazendo a massa crescer ocupando todo o rúmen. Esse aumento de volume, comprime o abdômen e o diafragma, matando o boi por parada cardíaca e respiratória. Apenas alguns antiespumantes atuam eficientemente para acabar com esse tipo de espuma. Seu veterinário saberá o melhor tratamento.
Figura 11.
Aumento de volume no abdômen de bovino que acabou de morrer.
Fonte: Enrico L. Ortolani.
Figura 12.
Prepúcio exposto e inchado de bovino que acabou de morrer.
Fonte: Enrico L. Ortolani.
Figura 13.
Rúmen ainda não aberto e muito cheio.
Fonte: Enrico L. Ortolani.
Figura 14.
Presença de conteúdo viscoso e em forma de massa no rúmen.
Fonte: Enrico L. Ortolani.
São Paulo: municípios de Ibiúna, Ribeirão Bonito, Paulistânia e Mococa;
Goiás: município de Pirinópolis.
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Queridos leitores, desejo a todos um radiante ano de 2024 e que continuemos a parceria já mantida no “radar sanitário”.
Caso tenha alguma sugestão sobre a coluna ou notícia de focos e surtos, por favor escreva para o seguinte endereço eletrônico: ortolani@usp.br