O carro-de-boi tem um papel muito importante na história do Brasil. Ele sintetiza, em uma única imagem, o papel do bovino como parceiro indissociável da conquista rumo a oeste e à interiorização do país, ao unir mobilidade e alimento, ou seja, energia como trabalho e como subsistência. Hoje, ele se mantém como tradição em algumas cidades que os celebram em carreatas. Ele, ainda, persiste no nosso dia a dia pela expressão “não colocar o carro na frente dos bois”, usada para denotar algo feito apressadamente, sem a devida avaliação e que inverte a ordem lógica das coisas. As relações de carro, incluindo a versão moderna deles, e a bovinocultura, abundam e podem promover boas reflexões para mantermos a ordem das coisas. É isso que se pretende com este texto.
No primeiro exemplo da relação da bovinocultura de corte com a indústria automotiva, há um tanto desse pensar “do carro na frente dos bois”, pois foi em um frigorífico, invertendo a lógica, que Henry Ford teve a ideia de criar a linha de produção, uma das mudanças mais revolucionários da nossa história. Ele enxergou que a linha de processamento do frigorífico era uma forma eficiente de “desmontar” o animal e que, portanto, seria igualmente eficiente para montar algo, bastando pensar de trás para frente. Essa inspiração foi determinante para possibilitar a produção eficiente do Modelo T que, custando US$850,00 em 1913, era vendido por US$290,00 em 1927, um valor acessível para a massa trabalhadora. Foi o início da popularização do transporte automotivo.
Até a crise do petróleo, nos anos 1970, a relação da bovinocultura e a indústria automotiva não ia muito além do aproveitamento do couro nos assentos que, apesar de substituídos por opções sintéticas por um bom tempo, voltou, especialmente como uma opção para carros mais luxuosos, em função de sua superioridade como material, seja pela beleza ou pelo conforto. Hoje, em função de uma maior consciência ecológica, percebe-se, também, a vantagem do uso de um produto natural, evitando a necessidade de uma nova manufatura e todas as externalidades ambientais negativas vinculadas a ela. Infelizmente, na questão de emissão de gases de efeito estufa (GEE), não é feita a contabilidade dessa economia em favor das cadeias da bovinocultura de corte e leite, pois para o cálculo da intensidade de emissão (kg de GEE/kg de produto), o “produto” no numerador restringe-se apenas à carne e ao leite.
No Brasil, a crise do petróleo gerou o Proalcool em 1975, programa de substituição da gasolina pelo etanol de cana-de-açúcar. O programa visou tanto o aumento da produção da matéria-prima, como a questão tecnológica de viabilizar motores que pudessem usar o novo combustível. Quase cinquenta anos depois, mesmo com acidentes de percurso, como a crise de desabastecimento nos anos 1980-1990 e uma boa recuperação, com a invenção genial brasileira do carro-flex, disponível no mercado desde 2003, temos uma opção viável de combustível limpo com participação relevante na substituição de combustível fóssil. Há, também contribuição na matriz energética geral, pois muito da biomassa da cana é usada para geração de energia via queima, nas próprias usinas e na cogeração de energia.
A mistura do etanol na gasolina teve ainda um grande benefício, pois o etanol permitiu abandonar o uso de chumbo-tetra-etila como antidetonante, um componente altamente poluente e tóxico. Esse composto de chumbo era usado na gasolina desde 1922 e, graças ao Proalcool, o Brasil foi o segundo país deixar de usá-lo em 1989. Para saber o quanto o chumbo tetra-etila foi inacreditavelmente ruim para a humanidade, recomendo assistir “O Homem que Acidentalmente mais Matou Gente na História”.
No quesito poluição, tanto os carros como os bovinos, como qualquer outra atividade humana, têm sua contribuição. A diferença é que, para os veículos que usam combustível fóssil a emissão é de carbono (C) que estava embaixo da terra e, portanto, moléculas a mais de CO2 a concentrarem na nossa atmosfera. O bovino, por sua vez, faz parte do ciclo biogênico do C e, dada uma população constante, ele apenas faz parte da reciclagem do C que já está na atmosfera, sem aumentar sua concentração. Há, ainda, outra grande diferença, o principal composto carbônico relativo aos bovinos é o metano (CH4), que se mantém na atmosfera por cerca de uma década. No caso da poluição veicular, o vilão é o dióxido de carbono (CO2), cuja permanência passaria dos 1000 anos.
O problema é que, para facilitar a contabilidade, cada componente é corrigido apenas pelo poder de aquecimento (GWP100) em relação ao CO2, conforme a equação abaixo:
GEE-CO2-equivalente = (CO2 X 1) + (CH4 X 25) + (N20*295)
Em 2006, com os valores de emissão global de GEE assim calculados, foram apresentadas a emissão global por setores, ficando a pecuária com valores superiores aos do setor de transporte (18% X 14,5%), uma informação simplesmente errada que, até hoje, reverbera na imprensa e na Internet. Um valor mais recente para a pecuária seria 12,0% da emissão global, conforme publicação da FAO de 2023. Portanto, na contribuição por setores, o “carro” foi para frente dos bois!
Há muitas estratégias para a redução das emissões em cada um desses setores, inclusive com o emprego de alta tecnologia, como os carros elétricos e a carne cultivada em laboratório, respectivamente para o setor de transporte e da pecuária. São dois casos com trajetórias distintas: enquanto os carros elétricos ganham tração para passar de promessa a realidade, a carne de laboratório vai confirmando sua inexequibilidade em ganhar escala, conforme longamente previsto por especialistas da área de cultura de tecidos.
Não que o caminho dos carros elétricos não tenha seus percalços, com desafios na questão da bateria e, especialmente, na ainda precária distribuição de pontos de abastecimento. Aqui, se apresenta como solução o carro híbrido que combina a flexibilidade de aproveitar a rede de abastecimento já estabelecida para carros à combustão, com o uso da eletricidade sempre que possível, ideal para a transição entre o carro à combustão e o 100% elétrico.
Quando o etanol é usado nesse veículo híbrido, a agropecuária volta a se entrelaçar ao transporte. Se até recentemente o etanol vinha só da cana-de-açúcar, hoje tem participação crescente do milho. A indústria da cana sempre oportunizou resíduos e subprodutos para a nutrição animal (bagaço de cana, melaço, levedura etc.), mas no caso dos resíduos do etanol de milho (DDGS, óleo etc.), eles são parte fundamental da equação para a viabilidade do negócio de produção do etanol a partir de cereais. São, também, ingredientes muito interessantes do ponto de vista nutricional, compondo muito bem em dietas para animais confinados ou em suplementos oferecidos em pastagem.
O uso de coprodutos ajuda a reduzir a pegada ambiental, por eles aumentarem a biomassa na qual se diluem os efeitos negativos da produção do bem principal. Por isso, eles “carregam” uma carga menor de emissão por unidade de produto. Assim, é natural que o milho grão tenha mais kg de GEE/kg do que o seu coproduto DDGS (1,39 kg CO2-eq/kg X 0,03 kg CO2-eq/kg). Se do coproduto, ainda, gera desempenhos superiores, novamente os passivos ambientais se diluem. Quando o DDGS, em uma dieta de confinamento, aumenta o ganho de peso em relação a uma dieta semelhante da qual ele substitui o milho (o que costuma acontecer) temos boas chances da emissão em kg de GEE/kg de carne ser menor para a dieta com o DDGS. Raciocínios semelhantes podem ser extrapolados para a apegada hídrica e à produção de dejetos.
Por falar em dejetos, no caso dos de origem animal, há cada vez mais interesse em usá-los nas lavouras, em substituição total ou parcial de fertilizantes químicos. O seu uso fecha uma circularidade importante, em que a cana ou milho para a produção de etanol é adubada com esterco de animais confinados, em seguida os coprodutos da indústria do etanol são direcionados para alimentar animais em um confinamento que, ao final de uma rodada, vende os dejetos acumulados para a unidade produtora de cana ou milho, reiniciando o ciclo.
O que temos aqui permite fazer um cenário bastante atraente: o uso do carro flex híbrido abastecido com etanol, a opção de menor pegada de C, com resíduos e coprodutos da produção do etanol usados na alimentação de bovinos e os dejetos destes sendo usados nas plantações de cana e milho usados como matéria prima para a produção do etanol. É evidente que esse cenário não é autossuficiente e, ainda que ele possa ser incentivado, sempre haverá a preocupação da competição entre produção de biocombustível e alimentos.
Nessa questão, a experiência atual e os dados mostram que a situação do Brasil é bastante confortável. Além de haver mais de 20 milhões de hectares, hoje como pastagens, passíveis de serem usados para produção agrícola e cujo impacto na produção pecuária pode ser perfeitamente absorvido via aumento de produtividade, o etanol de segunda geração (etanol 2 G) já é uma realidade. Este, com prováveis avanços no processo, deve se tornar cada vez mais viável. Essa alternativa permite o uso de qualquer composto celulósico e, a celulose, é o componente orgânico mais abundante da natureza, o que definiria uma questão cujos debates têm, mesmo sem essa ajuda, mostrado ser perfeitamente conciliável a produção de biocombustíveis sem colocar em risco a nossa segurança alimentar. Seja como for, importante manter-se atento a todos os efeitos, de maneira a mitigar aqueles indesejáveis, melhorando os ganhos líquidos da opção pelos biocombustíveis. Em um último entrelaçamento entre bovinos e transporte vale lembrar que, em 2021, quase 8% do biodiesel produzido no Brasil veio de 725 mil toneladas de sebo bovino, que teria uma pegada de carbono 23 vezes menor do que o diesel convencional, conforme dados do Ministério de Minas e Energia.
Por fazer parte do ciclo biogênico do C, pela menor meia-vida na atmosfera do seu resíduo, por poder fazer parte da solução em função de oportunidades de economia circular, fica claro que, para ajudar a um futuro melhor com mobilidade, colocar os bois ao lado do carro flex à etanol, contrariando o ditado popular, é o mais certo a se fazer.