As expressivas altas dos preços internacionais e domésticos da maior parte das commodities que servem de base para a produção de alimentos voltaram a garantir a essas matérias-primas um papel de destaque no forte crescimento da atividade econômica brasileira em 2010. Mais do que deitar sobre os louros da bonança do ano e das perspectivas positivas para 2011, porém, as cadeias do agronegócio nacional têm de estar atentas e pressionar pela solução de carências político-estruturais que, se não forem sanadas, tendem a abreviar os efeitos do ciclo virtuoso aberto pela crescente demanda global alavancada pelos emergentes, o próprio Brasil entre eles.
O alerta é de José Luiz Glaser, que em 1999 assumiu o comando das operações de soja da Cargill no país e que hoje deixa oficialmente a empresa. Embrenhado no setor há 28 anos e um de seus principais traders nessa última década de crescimento acelerado no país, Glaser, aos 55 anos, definiu há tempos que essa seria a idade ideal para descer da montanha-russa. Vivenciou períodos de prosperidade e desilusão no campo, e inicia esse “ano sabático” com a certeza de que o Brasil precisa de um plano de infraestrutura que faça sentido para que as profecias expansionistas tornem-se realidade.
À beira de uma das piscinas de um tradicional clube paulistano, Glaser ainda gozava as férias acumuladas que tinha de tirar antes de consumar a aposentadoria no momento em que as cotações da soja voltavam a se aproximar da máxima histórica alcançada em junho de 2008, quando uma onda "altista" dos preços dos alimentos inundou o mundo, ressuscitou debates acalorados acerca da segurança alimentar e forçou uma reavaliação global da importância de produtos básicos como milho, trigo, soja e açúcar, inclusive como alternativas de investimentos. Glaser avisa que "tudo é ciclo".
"Vivemos a volta do ciclo da matéria-prima. Alguns ciclos são mais longos que outros, dependendo da maturação de investimentos, mas um dia eles acabam. Por isso é preciso aproveitar a boa fase atual para investimentos em educação, infraestrutura e em reformas necessárias para prolongá-la. Além de melhorias na logística, uma antiga obsessão, Glaser defende um zoneamento econômico-ecológico realista e eficiente para a produção de grãos – “com a demanda crescente, haverá pressão sobre a floresta, já que os produtos agrícolas estão lucrativos” - e mais investimentos em tecnologia para que as produtividades das lavouras possam continuar aumentando.
Glaser se aposenta como diretor da maior empresa de agronegócios do mundo responsável, no Brasil, pelo carro-chefe do campo do país, que é a soja. Há 28 anos, quando entrou na multinacional como estagiário, o grão ainda tentava se firmar em terras nacionais. Na época, o suco de laranja era mais importante para a subsidiária brasileira do grupo, mas Glaser não estava por aqui. Depois de deixar a Curitiba natal em 1973, de começar suas especializações em São Paulo e de trabalhar dois anos na SKF Rolamentos, decidiu ir aprender inglês nos EUA.
Nessa época, lembra, ouviu de Alkimar Moura [professor da FGV, ex-diretor do Banco Central e ex-vice-presidente do Banco do Brasil] que, ligado à indústria automobilística, sempre trabalharia na crise. “Já trabalhar com alimentos é diferente”, disse Moura a Glaser, segundo relembra o segundo, “porque as pessoas tem que comer todo dia”. Para o agora ex-diretor da Cargill, pesou para partir para o novo setor o fato de que o Brasil tinha muita terra disponível e grande potencial de crescimento - como ainda tem, por sinal. Fez mestrado em commodities na Califórnia, em curso patrocinado pelas grandes tradings mundiais - ADM, Bunge, Cargill e Dreyfus, o famoso grupo “ABCD” - e, de volta ao Brasil, optou pelo "C".
Iniciante estreou no incipiente segmento de soja, como trader. “Há 20 anos, a soja ainda era sazonal. O país exportava de março a setembro, quando entrava a safra dos EUA no mercado. A soja virou um negócio de 12 meses algum tempo depois, com o aumento da produção. Ser trader de soja era muito pouco”. Era um tempo em que o grão começava a despontar em Mato Grosso, hoje o maior Estado produtor do Brasil, e de concentração da safra nos Estados do Paraná, Rio Grande do Sul e São Paulo.
Logo Glaser, que já era casado e tinha um filho recém-nascido, aceitou a proposta da Cargill de se mudar para Genebra para trabalhar com milho – “um produto novo e uma geografia nova, quando eu comecei a montar um acervo de ferramentas que seria muito usado no futuro” -, e dois anos depois se tornou o chefe da mesa de negociações de farelo de soja no escritório suíço. “Ali comecei a aprender a importância da logística e da arbitragem”, afirma.
Veio com o farelo a primeira transação marcante da carreira – “uma bela venda para a Rússia em um ano ruim [1989], e com exclusividade!” -, que lhe valeu o convite para comandar os negócios com café no Brasil. O Acordo Internacional do Café vigente na época havia chegado ao fim e Glaser, cujo segundo filho nasceu em Genebra, instalou-se em Santos. O mercado estava ruim e amargou perdas, mas continuou a consolidar a imagem de trader agressivo que ainda o acompanha.
“Não o conheço pessoalmente, mas já ouvi histórias sobre ele, nenhuma de gentileza. Só que os resultados da Cargill na soja são muito bons, e a estrutura montada por ele vai continuar, ao contrário do que muitas vezes acontece nessas situações”, disse um corretor ao Valor. “Sozinho não dá para fazer nada, é preciso montar um bom time. Até por isso há muito tempo defini que ia me aposentar aos 55 anos. O time não funciona se você ficar no cargo para sempre. A empresa é um instrumento perene e é preciso preparar pessoas melhores do que você para facilitar a sucessão”. Em tempo: o novo diretor de soja da Cargill no Brasil é o executivo Paulo Sousa.
Nesses dois anos em Santos houve tropeços, diz Glaser, mas mesmo assim ele foi escalado para comandar, de Nova Jersey, todo o negócio da Cargill com as exportações de café brasileiro. “Foi ótimo para os meus filhos e a primeira vez que tive a visão global de um negócio”. O executivo voltou aos EUA em 1991, mas em 1997, após uma passagem por Virgínia, já estava no Brasil novamente. A soja havia ganhado status no país, e ele veio sabendo que se tornaria o diretor da área, já que o ocupante do cargo, Sérgio Barroso, já havia sido escolhido para ser o novo presidente da múlti no país - depois da aposentadoria, tornou-se secretário do Desenvolvimento do governo Aécio Neves em Minas Gerais.
“Naquele momento, era preciso dar resultado. Sou centralizador, mas sempre tentei tomar decisões por consenso ou maioria”. A diretoria veio em 1999, após uma reorganização do grupo em plataformas de negócios. "Nos primeiros cinco anos, nunca trabalhei tanto. O mercado estava explodindo [a desvalorização do real, em 1999, colocou o Brasil de vez no mapa da soja]”. Foi quando logística virou obsessão, já que o grão avançava por Mato Grosso, onde não havia infraestrutura. Nasceu ali a certeza de que era preciso chegar primeiro aos novos pólos de plantio e tornar viável uma saída para as exportações pelo Norte – “se a BR 163 sair, eu ganho, se não sair, eu perco”, recorda-se. Está saindo.
Mesmo em férias, Glaser, que faz parte dos conselhos do Ibmec e do frigorífico Minerva, mantém algo da rotina que não existe mais. Acorda cedo (entrava às 06h30 na Cargill), preserva as noites (saía pontualmente às 17h00 para práticas esportivas, família e leitura) e dorme 8 horas. Agora, diz, terá tempo para se dedicar à criação de cavalos, e quer ajudar a profissionalizar esta cadeia produtiva. Pretende viajar, e dessas visões poderá sair um novo futuro profissional. Foi testemunha do desenvolvimento do interior do Brasil. Ajudou a construir a cadeia produtiva mais eficiente do agronegócio nacional. E acredita que, com planejamento, foco e investimentos, a força do país nesse mercado crescer.
Fonte. Valor Econômico. Por Fernando Lopes. 03 de janeiro de 2011.