O municpio de Rio Claro, no interior paulista, tomou um susto neste comeo de ano. Seu maior patrimnio ecolgico, o antigo Horto, foi invadido por um grupo de sem-terra. Barracas de lona preta ergueram-se em meio ao verde da vegetao protegida. Um acinte ambiental.
A responsabilidade pelo absurdo coube a uma suposta dissidncia do MST, acobertada sob o pomposo, e desconhecido, nome de Associao Brasileira do Uso Social da Terra (Abust). O esbulho segue o ritual que j cansou a sociedade: os justiceiros de araque argumentam que tal rea est ociosa, rompem suas cercas e exigem sua distribuio. Na marra.
Vem de longe a histria da atual Floresta Estadual "Edmundo Navarro de Andrade". Sua rea foi adquirida pela Companhia Paulista de Estradas de Ferro em 1909, destinada a produzir espcies florestais. A ideia era revolucionria: substituir o uso das toras surrupiadas da floresta atlntica por rvores plantadas. Isso h um sculo!
Coube ao lendrio Edmundo Navarro de Andrade a responsabilidade pela conduo da ousadia, visando a produzir a madeira - dormentes, lenha, postes - demandada pela expanso das ferrovias. Formado em Portugal, o jovem agrnomo recebeu do conselheiro Antonio Prado, ento presidente da companhia, a incumbncia de implantar os hortos florestais da Paulista. Era 1904. Vrias fazendas foram adquiridas com a nobre finalidade, sediando em Rio Claro as atividades centrais do projeto florestal. Surgia o bero do eucalipto no pas.
Aps 19 anos de plantios experimentais, utilizando espcies nativas e exticas, Navarro de Andrade concluiu pela supremacia do eucalipto, gigante rvore de origem australiana. Entre as 150 espcies de eucalipto testadas, algumas demonstravam por aqui uma rapidez de crescimento impressionante. Bastavam 15 anos para oferecer boa densidade e dureza do lenho, mesmo plantadas em solos mais fracos, arenosos, como aqueles presentes nas manchas do cerrado paulista onde normalmente se instalaram os antigos hortos florestais.
Consciente da necessidade de valorizar as espcies locais, Navarro de Andrade implantou tambm uma coleo experimental com 86 espcies distintas de essncias florestais "indgenas", como eram chamadas na poca. Mas, em face dos objetivos de seu trabalho na ferrovia, nenhuma delas sobrepujou a precocidade do extico eucalipto. As rvores nativas pau-jacar e angico ficaram nos honrosos segundo e terceiro lugares. Perdem por dcadas na competio.
Essa importante histria - que reflete os primrdios da silvicultura nacional - se conta no Museu do Eucalipto, inaugurado em 1918, ali mesmo no Horto de Rio Claro, pelo prprio protagonista desse sucesso. nico no mundo, at seu incrvel assoalho espelha, nas pranchas lustrosas que o compem, a riqueza da madeira cujas perfumadas folhas, na Austrlia, alimentam os dceis coalas. Monteiro Lobato visitou-o em 1920.
Hoje o velho Horto est transformado em Floresta Estadual, unidade de conservao administrada pela Fundao Florestal, ligada ao governo paulista. Seus 2.230 hectares de florestas plantadas e naturais representam uma ddiva incrustada em meio aos canaviais da regio. Local de paz e harmonia com a natureza.
Aos olhos dos invasores de terras, entretanto, aquela mancha verde carregada de histria expressa uma gleba ociosa, inaproveitada, abandonada. Parece piada, de mau gosto. Mas verdade. Tal percepo equivocada ocorre h tempos no processo da reforma agrria brasileira. Imensas e ricas reas com remanescentes da floresta atlntica, dos cerrados ou da Amaznia viraram pobres assentamentos rurais, surrupiando a mata virgem em nome da nfase produtiva. Uma lstima.
Pelo Brasil afora, a sanha dos invasores de terras invariavelmente avana contra a preservao ambiental. Vide o emblemtico caso da Fazenda Araupel, em Rio Bonito do Iguau (PR), ou da Fazenda Zabel, no litoral de Touros (RN). Recentemente a Fazenda Teijin, no Pontal do Paranapanema paulista, ofereceu lamentvel exemplo dessa insensibilidade ecolgica da questo agrria. Desapropriada pelo Incra em 2004, sua enorme reserva florestal acabou rapidamente devastada por centenas de famlias l assentadas. Reportagem de Jos Maria Tomazela, aqui, no Estado (27/9/2009), descreve como a biodiversidade naquele rinco cheio de onas e veados pantaneiros virou carvo e comida na panela do MST. Uma tragdia.
Esse atraso no campo das ideias, que enxerga floresta como terra improdutiva, embasa a ltima deciso do Incra, de querer tomar do Itesp, o Instituto de Terras do Estado, todos os antigos hortos florestais que da velha Companhia Paulista passaram a pertencer extinta Fepasa. A maioria deles j contempla miserveis assentamentos, cuja renda esteve razovel apenas durante a pilhagem das toras de eucalipto que cresceram seguindo a receita de Navarro de Andrade. Finalizado o saque florestal, restaram a pobreza e, consequentemente, o abandono, o arrendamento ou a venda ilegal dos lotes. Triste situao.
Felizmente, em poucos dias a Justia deferiu o pedido de reintegrao de posse, solicitada pela Procuradoria-Geral do Estado (PGE), em favor da Floresta Estadual de Rio Claro. Para alvio dos ambientalistas, os invasores mequetrefes foram bagunar noutra parada, qui j devastada. Que prevalea, sempre, o Estado de Direito.
O Brasil precisa construir um novo modelo de reforma agrria. Estabelecer um processo planejado, democrtico, sustentvel, moderno. Nele a invaso deixar de ser o passaporte para a conquista do lote. E a floresta jamais ser considerada rea improdutiva, mas, sim, reserva de biodiversidade. Tarefa urgente.
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