Esta é a opinião de Evaristo de Miranda, um dos cientistas brasileiros mais respeitados na área ambiental. Doutor no assunto, ele fala sobre diversos aspectos, que envolvem clima, produção de alimentos e preservação da natureza.
Evaristo de Miranda é Doutor em Ecologia e coordenador do Grupo de Inteligência Territorial Estratégica (GITE) da Embrapa.
Confira a sua entrevista, concedida à revista Agroanalysis:
Agroanalysis: A disputa entre ruralistas e ambientalistas acirrou ou amenizou depois da aprovação do novo Código Florestal?
Evaristo de Miranda: Os embates são bem mais complexos. Não são apenas dois atores, e sim uma multiplicidade. As circunstâncias mudaram, mas o emperramento de vários processos não ajuda a ter uma perspectiva mais construtiva. Veja, por exemplo: o novo Código Florestal foi aprovado (Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012), e foram dois anos para a esfera governamental começar a operacionalizar efetivamente o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e o Programa de Regularização Ambiental (PRA), ainda pendentes de problemas técnicos e legislações estaduais. Sem essas normas de execução, os produtores foram pressionados no sentido de pagar multas indevidas, que vêm sendo inscritas na dívida ativa da União, conforme denunciado pela área agrícola. A lei pode amenizar as disputas evocadas em sua pergunta, mas ela precisa ser regulamentada e aplicada com uma exegese equilibrada, e não ignorando direitos dos produtores, como o de não possuir Reserva Legal quando o desmatamento ocorreu em conformidade com a legislação de sua época. O artigo 68 da nova lei, que trata desse tema, segue ignorado e tratado como se não existisse nos manuais e cartilhas sobre CAR e PRA.
Agroanalysis: Por que a legislação ambiental é pobre em conteúdo tecnológico?
Evaristo de Miranda: A dimensão tecnológica não existe na nova lei florestal. A agricultura foi tratada, nos debates, pela mídia e na legislação, como uma prática do Neolítico. Um exemplo é a proibição de cultivar encostas, exploradas no mundo inteiro - como em arrozais irrigados e cultivos de chá e de café na Ásia; plantios de batatas e cereais nos Andes; viticultura e fruticultura na Europa etc. Cultivar em encostas no Brasil com tecnologias de conservação de solo e água, com cultivos perenes como café, seringueira, eucalipto, fruteiras, pastagens etc., não causa maior impacto ambiental. A legislação ambiental deveria ter proibido nas encostas a agricultura sem tecnologia e sem boas práticas agronômicas e premiado a agricultura sustentável, com tecnologia. Para muitos, por ignorância ou má-fé, esta última agricultura não existe. E a lei generaliza a proibição de uso das encostas no Brasil como se fosse um sinônimo de devastação ambiental. A revisão futura da lei retomará o uso da tecnologia na agricultura, dimensão a ser incentivada, e não punida ou ignorada.
Agroanalysis: E a criação indiscriminada de unidades de conservação e terras indígenas?
Evaristo de Miranda: A criação não é indiscriminada. Ela segue a lógica e a pressão de diversos grupos sociais. O que não existe é planejamento estratégico desse conjunto de atribuições de porções territoriais, destinado exclusivamente a minorias, finalidades ou grupos específicos. Segundo dados do Ministério do Meio Ambiente (em outubro de 2013), 1.098 unidades de conservação (UCs) ocupam 17,0% do Brasil. Para a Funai, as 584 terras indígenas (TIs) ocupam aproximadamente 14,0% do território nacional. Quando reunimos as duas categorias, eliminando sobreposições, elas ocupam 247,0 milhões de hectares ou 29,0% do país. Segundo a IUCN (International Union for Conservation of Nature), os onze países com mais de 2,0 milhões de quilômetros quadrados existentes no mundo (China, EUA, Rússia etc.) dedicam 9,0%, em média, de seus territórios às áreas protegidas. Com quase 30,0%, o Brasil é o campeão mundial da preservação. No caso das UCs, a legislação ambiental brasileira ainda define, no seu entorno externo, uma zona de amortecimento onde as atividades agrícolas são limitadas por determinações da gestão e do manejo da UC (proibição de transgênicos, de pulverizar com aviação agrícola etc.). A largura desta zona é variável. Em nossas estimativas geocodificadas, seu alcance vai de 10,0 a 80,0 milhões de hectares adicionais (1,0% a 9,0% do Brasil).
Agroanalysis: Além disso, há os assentamentos, reservas extrativistas e quilombos. Qual sua dimensão e alcance?
Evaristo de Miranda: Sob responsabilidade do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), existem 9.128 assentamentos, de diversas naturezas e estágios de implantação. Eles ocupam 88,1 milhões de hectares (10,2% do Brasil ou 14,4% do que resta quando descontadas as UCs e TIs). Pelos dados do Incra e da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, as 268 áreas quilombolas existentes ocupam cerca de 2,6 milhões de hectares. Uma das missões da minha equipe é analisar o conjunto das atribuições e demandas territoriais e colocá-las no mapa. Existem milhares de solicitações adicionais de criação e/ou ampliação de UCs, TIs, assentamentos e áreas quilombolas. Esse desafio de governança fundiária envolve conflitos graves, processos judiciais, impactos sociais e vastas porções territoriais, com implicações econômicas e custos significativos. E, em geral, são áreas já ocupadas pela agricultura e até por núcleos urbanos.
Agroanalysis: Quanto do Brasil já está atribuído a todos esses grupos e minorias juntos?
Evaristo de Miranda: Os dados de diferentes ministérios, reunidos e estudados pelo Grupo de Inteligência Territorial Estratégica da Embrapa, indicam que mais de 290,0 milhões de hectares, 34,0% do território nacional, estão assim atribuídos. O mapa do Brasil com mais de 11.078 áreas legalmente atribuídas mostra um enorme desafio de gestão territorial e fundiária. Cada uma delas pede um tipo de gestão, avaliação e monitoramento. Além das demandas adicionais desses grupos, há, ainda, a necessidade de compatibilizar essa realidade territorial com crescimento das cidades, da geração de energia, da logística, dos transportes, dos sistemas de abastecimento, armazenagem e mineração e da própria agricultura.
Agroanalysis: Apesar de todas as áreas protegidas, os agricultores ainda devem preservar a Reserva Legal (RL) e as Áreas de Preservação Permanente (APPs). Esses conceitos são exclusivos do Brasil?
Evaristo de Miranda: Sim. O país campeão da preservação territorial exige que os agricultores assumam o ônus de preservar porções significativas no interior de seus imóveis rurais, numa crescente que chega a 80% da área da propriedade na Amazônia. Se, como a jabuticaba, RL e APP são exclusividades nacionais, é preciso distinguir conceito e definição. Aqui, as UCs excluem a presença humana, enquanto, na Europa, Ásia e Estados Unidos, pode haver agricultura, aldeias e diversas atividades nos parques nacionais, sem evocar a ampla visitação turística. Não há bases científicas suficientes na definição de "RL" ou "APP". Na lei, a APP é justificada, entre outras razões, para garantir a "estabilidade geológica". Ou seja, essas faixas protegidas, com ou sem vegetação nativa, impediriam o movimento de placas tectônicas, terremotos ou subducção? Se fosse assim, o Japão deveria estudar o seu uso. A quantificação na RL e APPs é mais distante ainda de qualquer ciência. A dimensão da APP é em função da largura do curso dágua, seja arroio no pampa, rio encachoeirado na serra do Espírito Santo, igarapé na Amazônia, corixo no Pantanal ou riacho intermitente no sertão do Ceará. Sempre igual. Qual a base pedológica, geomorfológica, climatológica ou hidrológica desse critério, que acomodou, ainda, a dimensão do imóvel?
Agroanalysis: Agricultura de baixo carbono para mitigar as mudanças climáticas e salvar o Planeta é ficção ou realidade?
Evaristo de Miranda: Segundo dados do International Energy Statistics, o Brasil é o 12º emissor e contribui com 1,4% das emissões globais de CO2. Somente China e EUA juntos representam mais de 41,0% das emissões planetárias; os doze maiores emissores mundiais representam mais de 70,0%. Nas emissões de CO2 por habitante, o Brasil ocupa a 79ª posição, com 2,4 toneladas per capita, enquanto os Estados Unidos estão em 5º lugar, com 17,6 toneladas per capita. Por unidade de PIB, o índice do Brasil é de 0,24 (90ª posição). Os esforços de redução das emissões brasileiras são louváveis, mas sua capacidade de mitigação é muito pequena. O Brasil tem baixas emissões de CO2 porque 45,0% de sua energia é renovável, contra uma média mundial de 18,6% e de apenas 7% nos países da OCDE. Esse resultado deve-se à agricultura. Ela garante 31,0% da matriz energética (68,3 M de TEP) e consome apenas 4,5% na matriz (9,1 M de TEP em combustíveis fósseis). Somente a cana-de-açúcar (etanol e bioeletricidade) garante mais energia na matriz (18,0%) do que todas as hidroelétricas juntas (13,0%). Diminuição do desmatamento e uso crescente de tecnologias (plantio direto na palha, integração lavoura-pecuária- floresta, OGMs etc.) reduzem ainda mais a emissão de CO2 e ampliam a captura de carbono no solo. China, EUA e Europa é que precisam mitigar. Essa é uma pauta externa, trazida à nossa agricultura, que já é de baixo carbono. Eu gostaria muito de ver a mesma ênfase num programa de "cidadão urbano de baixo carbono". Vocês conhecem algum em São Paulo?
Agroanalysis: As incertezas climáticas atuais e futuras implicam adaptar a agricultura e a sociedade?
Evaristo de Miranda: Não há dúvida. Esse grau de adaptação às flutuações climáticas interanuais,
mensais e até diurnas varia entre cultivos anuais, plurianuais ou perenes e depende dos sistemas de produção, da capacidade de investimento e do uso de tecnologias. Não existe tecnologia que funcione sempre e em qualquer condição, salvo, talvez, a irrigação. Os agricultores são como investidores frente às incertezas climáticas. Alguns, por temperamento e condição, assumirão riscos maiores, buscarão mais produtividade e adotarão certas tecnologias; os mais conservadores, em circunstâncias análogas, adotarão outras tecnologias, perderão em produtividade, mas reduzirão os riscos e os impactos das variações climáticas. Ampliar a irrigação, a eletrificação, a mecanização, a armazenagem nas fazendas, a logística e o seguro rural seria um enorme avanço face às incertezas climáticas. Alguns querem mudar o clima e salvar o planeta em cinquenta anos. Os agricultores precisam salvar agora a sua roça de hortaliças, milho, feijão e outras trivialidades. Desenvolvimento rural e inovações tecnológicas são a melhor garantia contra as incertezas climáticas presentes e futuras. Essa é a pauta climática dos produtores rurais brasileiros.
Agroanalysis: O monitoramento e o emprego de satélites podem ser considerados uma realidade agropecuária brasileira?
Evaristo de Miranda: A questão crítica é a da comunicação. Os satélites estão presentes na previsão meteorológica, nas comunicações, no GPS, na agricultura de precisão, na gestão territorial do agronegócio e em outras aplicações combinadas a drones e aerolevantamentos. Essas informações e serviços não chegam à maioria dos agricultores. O setor rural não está organizado e não se comunica nem consigo mesmo, nem com a sociedade. Em inovação e uso de satélites, isso é ainda mais dramático. Centros de pesquisa voltam-se para pautas acadêmicas como se fossem departamentos de uma faculdade. Aumenta a distância entre os problemas dos agricultores e as prioridades dos pesquisadores. O clima de conflito e patrulhamento anunciado em sua primeira pergunta levou muito pesquisador a não se identificar com o setor rural e suas necessidades.
O agronegócio, apesar de toda a agregação de valor tecnológico nos últimos anos, continua com uma posição passiva/reativa em relação à comunicação e, especialmente, em relação à internet.
Para entrar definitivamente na modernidade, conquistar a simpatia da população urbana e consolidar seu espaço político, o agronegócio - entidades, empresas, lideranças - deveria assumir posição ativa em relação aos seus processos de comunicação com a sociedade, promovendo o monitoramento qualitativo das mídias sociais e tradicionais na internet, bem como o mapeamento e monitoramento de influenciadores. Essas ações são fundamentais para construir estratégias, identificar tendências, orientar e alinhar a comunicação e a gestão de riscos.
Fonte: Agroanalysis. Por Paulo Roque. Junho de 2014.
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