Foto: Bela Magrela
O início do segundo semestre de 2023 chegou com o El Niño despertando, recordes de máximo de temperatura média da terra e um trabalho na revista Nature, que deve garantir ainda mais calor, mas, quem sabe, possa ajudar a negociações mais justas sobre ações climáticas.
Um relato parcial do conteúdo do trabalho é o objetivo desse texto, como forma de ampliar o acesso das pessoas a ele. Ao final, são feitas algumas considerações sobre como devemos aproveitá-lo.
Os dois autores, Andrew Fanning e Jason Hickel, são acadêmicos de universidades europeias e fizeram um trabalho ambicioso, com dados globais de emissão de carbono entre 1850 e 2020, para mostrar como cada país usou sua “porção justa” da atmosfera e, assim, estimar quais valores, inclusive monetários, estariam envolvidos.
Uma das premissas mais importantes desse trabalho é exatamente tratar a atmosfera como um bem da humanidade a que todos têm o mesmo direito e, portanto, o orçamento de gás carbônico (CO2) alocado nesse espaço deve seguir o mesmo princípio, de onde vem a porção justa de alocação de CO2 de cada país.
Definida a porção a que cada país tem direito, quando a emissão acumulada passa desse valor, considera-se que há uma apropriação do espaço alheio que passaria a ser um débito climático. Por essa apropriação, portanto, os países mais emissores deveriam uma compensação para os países menos emissores.
Os autores trazem à tona o parágrafo 51 do Acordo de Paris, que exime os países signatários de responsabilidades ou compensações, mas pontuam que vários especialistas defendem ser ainda possível o desenvolvimento de um sistema para responsabilizar e gerar compensações sob o Mecanismo Internacional de Perdas e Danos de Varsóvia, criado em 2013. Segundo eles, essa proposta ganhou força na COP26 (COP, Conferência das Partes da ONU), realizada em 2021 na Escócia, e na COP27 no Egito, quando formalmente foi estabelecido um fundo de perdas e danos, com detalhes a serem discutidos na COP28, que deverá ocorrer no final desse ano em Dubai.
Fanning e Hickel criaram um método empírico para quantificar quanto os países de emissão acima da sua porção justa deveriam pagar àqueles que usam menos. Assim, usando a abordagem de porção justa, calcularam o uso por país dos seus orçamentos de carbono estabelecidos para três cenários: (1) 350 ppm (partes por milhão) de CO2 na atmosfera, (2) o mundo, em média, 1,5°C ou (3) 2,0°C mais quente em relação a era pré-industrial.
A escolha desses cenários seria porque 350 ppm de CO2 na atmosfera seria o limite considerado seguro, 1,5°C seria o valor alvo e 2,0°C, o valor máximo firmados como metas no Acordo de Paris. As metas de emissão para manter 1,5°C seriam: redução de 45% até 2030 e chegar à emissão líquida zero em 2050. Os 350 ppm já foram atingidos em 1988 e, mantendo as condições usuais (business as usual), os 1,5°C serão atingidos por volta de 2030 e os 2,0°C, em 2044.
Além dos orçamentos de CO2 para 168 países nesses três cenários, eles simularam a opção se cada um desses países tivesse uma agressiva tentativa de redução de emissão para tentar a emissão líquida zero até 2050.
Para atribuir valor monetário ao que estaria sendo apropriado dos países que ultrapassam sua porção justa, os autores recorreram ao valores de carbono com base nos custos marginais de abatimento do último relatório (AR6) do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).
Os resultados foram apresentados para dois grupos: os países grandes emissores, grupo a que chamaram de Norte global; e os demais, denominados de Sul global. Os primeiros eram representados por Estados Unidos, Europa, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Japão e Israel, totalizando 39 países. O Sul global seria composto pelos demais países da Asia, Américas e África, somando 139 países.
Na tabela 1, o ano em que o Mundo, o Sul global e o Norte global, atingiu, ou atingirá, o orçamento total de emissão para cada um dos três cenários. Fica patente a grande diferença entre o Norte global e o Sul global e que este último seria credor desde 1969.
Tabela 1.
Ano em que o mundo atingiu, ou atingirá, o orçamento total de emissão de CO2 em cada um dos cenários.
Cenário |
Mundo |
Sul Global |
Norte Global |
350 ppm |
Atingido em 1988 |
Atingido em 2012 |
Atingido em 1969 |
1,5 °C |
Previsto para 2030 |
Previsto para 2048 |
Atingido em 1986 |
2 °C |
Previsto para 2044 |
Previsto para 2050 |
Atingido em 1995 |
Fonte: Fanning, A.L. e Hickel, J. (2023)
O mundo, atualmente, teria três vezes mais emissões acumuladas do que em 1988, quando o CO2 atingiu 350 ppm na atmosfera. O Norte global, por sua vez, teria excedido em 2,5 vezes e, mesmo que fizessem um grande esforço para tentar chegar à emissão líquida zero (net-zero) em 2050, ao conseguir manter os 1,5°C, estaria emitindo cerca de 3 vezes mais que a porção justa. Mantendo as condições atuais, para essa mesma situação, seriam 4 vezes.
Os países do Norte global seriam responsáveis por 91% da emissão acima da porção justa dos 1,5°C entre 1960-2019. Sem fazer qualquer ação de redução de emissão, essa emissão a mais pelos países do Norte dobrariam até 2050, todavia, a participação cairia para 60% por causa da emissão a mais dos países do Sul global nesse período. Um bom exemplo é a China que, de uma folga de 15%, em 2019, passaria para 27% de emissão a mais do que sua porção justa em 2050.
Há muitos outros resultados, mas, para simplificar, não serão aqui relatados. Recomendo fortemente a leitura da íntegra do trabalho a todos que puderem, de leitura aberta na página da revista Nature, conforme endereço eletrônico já passado no início do presente texto.
Os resultados mostram como o Norte global já esgotou sua porção justa, baseada na igualdade dos orçamentos de carbono dos cenários de 1,5°C e 2,0°C. Qualquer nova emissão de sua parte implicaria em novas apropriações das porções justas de outros países. Em contraste, o Sul global permaneceria bem, dentro de sua porção justa do orçamento de 1,5 °C. Considerando um cenário ambicioso de mitigação líquida zero até 2050, 50% das porções justas disponíveis seriam apropriadas por nações ricas. Nesse caso, a compensação devida à emissão menor do Sul global seria de US$192 trilhões até 2050, com um desembolso médio para esses países de US$940 per capita por ano.
Os benefícios desta abordagem específica por país seriam: (1) reconhecer a responsabilidade histórica dos países super emissores, (2) fornece uma compensação íntegra aos países que ainda estão dentro de sua porção justa e (3) poder acomodar mudanças nas trajetórias de emissões e nos preços do carbono ao longo do tempo.
Um fator importante para as contabilizações é a data inicial da contagem. Aqui, foi considerado 1960 como linha de base por estar entre 1850, uma data usual de base para análises de emissões cumulativas, e 1992, ano em que a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas foi estabelecida. Em 1960, já havia um período razoável de compreensão da influência da queima de combustíveis fósseis e acúmulo de CO2 atmosférico na temperatura global, cujo início de comunicação ao público em geral já ocorria desde a década de 1950. Desta época, há, pelo menos, um filme catástrofe baseado nas mudanças climáticas. Mesmo com a linha de base de 1992, os resultados mostram que os países baixos emissores teriam direito a uma compensação de mais de US$100 trilhões.
Os autores mostram que o cenário de emissão líquida zero é bastante improvável, citando os resultados do último relatório do IPCC em que, mantendo as bases atuais, o mundo deve chegar a + 3,2°C em 2100. Eles alertam que apenas o aumento de eficiência do lado dos suprimentos e novas tecnologias não devem ser suficientes para evitar isso. Recomendam, então, reduzir o lado da demanda, com menor produção e consumo de supérfluos, bem como por substituições com produtos feitos com tecnologias de baixo carbono. Além disso, defendem que devemos almejar sistemas econômicos regenerativos que armazenem carbono, reciclem a água e favoreçam a manutenção da biodiversidade.
Importante frisar que os próprios autores deixam claro que esse estudo não tem a intenção de ser uma proposta para implementação prática, mas que, ao propiciar a quantificação das emissões de uma forma que inclui responsabilidades históricas e atuais, poder ser usada como subsídio às discussões em relação à justiça climática. Também comentam sobre como outras formas de estabelecer a porção justa ou os valores de emissão do CO2, bem como levar mais em consideração particularidades de cada país. Por fim, ainda lembram como a base de dados usada também tem razoável grau de incerteza.
Trata-se de um trabalho cujos resultados interessam muito ao Brasil, por mostrarem que estamos do lado dos países de baixa emissão e com parte da nossa porção justa sendo apropriada pelos países do Norte global.
Importante que acadêmicos brasileiros e negociadores envolvidos nos fóruns internacionais sobre o clima, em especial nas COP’s, conheçam a fundo esse trabalho e toda crítica feita que deverá ser forte. Associando todas as críticas com as limitações expostas pelos próprios autores, que se compreenda bem todas as fortalezas e fraquezas do artigo, de maneira a aproveitar todas as informações relevantes como suporte nas futuras negociações.
No processo descrito acima, é importante que os próprios envolvidos no processo criem a capacidade de fazermos nossas próprias contabilidades, bem como sermos capazes de agregar aspectos que melhorem a proposta e contemplem de maneira mais adequada nossas particularidades.
Não é de se esperar que os valores calculados sejam reconhecidos e pagos pelos grandes emissores, quando nem o fundo para países em desenvolvimento, previsto no Acordo de Paris, tem um fluxo dentro do combinado. Todavia, especialmente se passar pelos crivos dos pares acadêmicos e detratores em geral, bem como se for aperfeiçoado, trata-se de uma importante ferramenta que coloca sobre uma perspectiva bastante convincente a forma injusta como as coisas têm sido tratadas.
Esforços de comunicação (como o presente texto), devem ser feitos para ampliar o público, dando conhecimento ao máximo de pessoas envolvidas com o assunto.
O Brasil, então, deve seguir perseguindo sua redução de emissão, especialmente porque temos muitas situações que podemos ao mesmo tempo, reduzir as emissões, aumentar a rentabilidade e reduzir o impacto ambiental. Não existe setor em que isso seja mais verdade do que no Agro brasileiro.
Podendo ser ousados nas opções de redução ganha-ganha, liderando pelo exemplo a descarbonificação da economia e com os dados como desse trabalho validados pela comunidade internacional, deixamos os países grandes emissores em uma situação indefensável, o que, infelizmente, não é garantia de nada pela grande assimetria de forças entre grandes e pequenos emissores e os variados interesses difusos do conjunto de países. Ainda que não seja suficiente para fazer justiça plena, poderá nos ajudar a chegar a acordos menos injustos.
Certamente, voltaremos a esse assunto!
Fanning, A.L., Hickel, J. Compensation for atmospheric appropriation. Nat Sustain (2023). https://doi.org/10.1038/s41893-023-01130-8
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