O celebrado poeta gaúcho Mário Quintana dizia que viajar é mudar a roupa da alma, no sentido de como o simples fato de se deslocar para uma realidade diferente da nossa é capaz de influir tão profundamente conosco. Quanto maior o grau do deslocamento, mais extravagante a nova roupa da alma pode ser tornar-se. Essa foi a minha sensação ao estar alguns dias na Islândia, aonde fui com a família para, primordialmente, ver a Aurora Boreal.
Apesar da nova roupa, a alma permaneceu fundamentalmente de agrônomo e foi impossível não enxergar, nas paisagens e passeios, a Islândia agrária. São as impressões superficiais que tive, somadas às informações das visitas feitas, incluindo aos museus e parques nacionais, bem como em conversas com locais.
Um mundo de gelo, pedra, água e fogo que faz com que a gente perceba como vivemos num lugar tão diferente e cujas diferenças fazem-nos refletir e agradecer por nossa tão generosa situação. Seguem as impressões e, em seguida, as reflexões.
A Islândia é uma grande ilha que tem a particularidade geológica de ser repartida ao meio por duas placas tectônicas, a placa Norte Americana e a placa Eurasiana. O detalhe é que elas estão se afastando e a ilha ganha cerca de dois centímetros de largura a mais por ano.
Essa “vantagem” tem conexão com haver 30 vulcões ativos que, com frequências variadas, sempre colocam o país nas notícias dos jornais pelo mundo. Quem não se lembra daquele de nome praticamente impronunciável que, em 2010, deixou por vários dias muitos países europeus com os aviões sem poder decolar? É o Eyjafjallajökull (pronuncia-se algo como Eia-Fiatla-Jokultli), localizado sob uma das menores geleiras da Islândia e, como todos os demais, sob intenso monitoramento de sua atividade. Todavia, nem de longe ele é o de maior preocupação, título que vai para o Katla, que estaria “atrasado”, pois ele costuma entrar em erupção duas vezes a cada 100 anos e sua última vez foi em 1918. A torcida é para que ele permaneça atrasado, pois o estrago potencial é muito grande. Se o atraso se estender por 10 mil anos, ele passa para a categoria de vulcão extinto, o que não deve ser o caso por agora, ou seja, ele segue como um vulcão adormecido.
O estrago causado vai muito além da lava, das cinzas e gases vulcânicos tóxicos, pois a quantidade de água que derrete das geleiras causa enchentes de enorme potencial destruidor, deixando grandes áreas praticamente sem vida e com uma recuperação que demora muitas dezenas de anos. Há, portanto, um balanço no que o vulcanismo cria e no que ele destrói, mas com o fator tempo complicando bem as coisas.
Ilustra bem isso, o caso da Ilha Surtsey, visível da geleira do Eyjafjallajökull, que surgiu de erupções vulcânicas sob o mar em 1963 e, apesar de 50 anos depois já ter sido colonizada por várias espécies vegetais e animais, ainda vai demorar muito tempo para ter um solo estruturado que possa ser explorado agronomicamente. No caso dessa ilha, exatamente por ser uma oportunidade de ouro para entender os processos de evolução, ela está totalmente protegida e é usada exclusivamente para fins científicos.
Depois que a Islândia foi descoberta, e as versões são muitas de quem a teria descoberto, várias foram as tentativas de grupos humanos de a colonizarem, com repetidos fracassos. O interessante é que foi o líder Viking de uma dessas tentativas que, ao desistir da ocupação e sair praguejando o lugar, deu o nome usado até hoje que significa “terra de gelo”.
O ano de 874 é considerado o ano inicial da colonização da Islândia. Ao longo do tempo, povos nórdicos foram colonizando a ilha. É impressionante como um lugar com um clima tão desafiador, de gelo e fogo, foi povoado desde tanto tempo atrás, quando se dispunha de recursos tão limitados, o que é uma grande demonstração da capacidade dos humanos se adaptarem mesmo em condições extremas.
Deve-se considerar que Islândia também tem seus pontos positivos. Além do encontro das placas tectônicas, há um feliz encontro de correntes marítimas. Do sul, vem a Corrente Norte Americana e, do norte, a Corrente Irminger.
Além de uma ajuda para reduzir o frio, o que ambas acabam trazendo são recursos físicos e de vida e, por isso, o litoral da Islândia é bastante abundante em peixes e frutos do mar. Sem dúvida, esses foram recursos que ajudaram na colonização da ilha.
Sem surpresa, à semelhança do que ocorreu em toda a história da conquista da espécie humana pelos territórios do mundo, cavalos, carneiros e bois foram também responsáveis pela conquista da Islândia, introduzidos pelos colonizadores, que também trouxeram cabras e porcos. Até então, a Raposa-do-Ártico (Vulpe lagopus fuliginosos), era o único mamífero nativo, portanto não havia nenhum herbívoro.
Nas nossas andanças pelas estradas islandesas, chamou a atenção a quantidade de cavalos nos pastos totalmente secos do final do Inverno (que, como o resto do mundo, está mais quente do que o esperado). Trata-se de uma raça trazida pelos colonizadores Vikings e que permanece pura, sem cruzamentos com qualquer outra genética. São animais de porte pequeno, com muita pelagem e que se destacam por sua docilidade, sendo muito valorizados por compradores de outros países.
Com relação aos ruminantes, os ovinos são a esmagadora maioria, mas é raro vê-los no inverno, por serem mantidos dentro de abrigos.
Bovinos, raramente são vistos, por ser em pequeno número mesmo. A carne dessas três espécies, junto com os peixes e frutos do mar e outras iguarias, como carne de rena, fazem o país ser autossuficiente em proteína animal. Um dos pratos típicos da deliciosa culinária islandesa é a sopa de carneiro.
Sendo um lugar tão desafiador, e tendo ocorrido sua colonização em tempos com tão poucos recursos, o que se viu foi uma violenta mudança no seu ambiente natural. Apenas com algumas poucas centenas de anos, a ilha que, praticamente, era coberta por árvores, perdeu 80% de sua cobertura natural.
A paisagem em suas planícies, hoje, é de áreas de pastagem, todas sistematizadas. Cada área é como um tabuleiro, cujo perímetro é composto por valas que captam a neve e a água do seu derretimento. Essa umidade vai permitir o crescimento da forragem na primavera-verão e, apesar da temperatura limitar o crescimento, o longo período de luz ajuda, além do que, exatamente pelo crescimento da forragem ser muito lento, sua qualidade nutricional é muito boa, como será mais bem discutido abaixo. Contribui para isso, também, haver muito menos desafios de pragas e doenças e, portanto, a planta acaba não tendo necessidade de produzir tantas substâncias secundárias para protegê-la. Para garantir a alimentação dos animais, o que se vê são muitos rolões de feno para serem usados no outono-inverno.
O país teve muitos problemas ambientais e, apenas em 1990, criou um conjunto de leis para garantir a harmonia entre a necessidade de produzir e a manutenção da natureza. A gramínea considerada chave para o país é a Leymus arenarius (Lyme grass), tendo a capacidade de crescer mesmo nas planícies arenosas, por ter longas raízes e promover relações simbióticas com microrganismos.
A segurança alimentar é uma questão estratégica para qualquer país e, no caso da Islândia, com tantas limitações para produzir alimentos, isso é ainda mais crítico. Um dos locais mais interessantes para aprender sobre isso foi um almoço dentro de uma estufa de tomate, o Restaurante Fridheimar (https://fridheimar.is/en/). Trata-se de uma família produtora de tomate que criou um restaurante dentro de uma de suas estufas em que vende um cardápio todo baseado nesse vegetal. Junto com o almoço é “servido”, a quem assim desejar, todo um esclarecimento do empreendimento pelos garçons. Reforçando o discurso, vários painéis explicam o funcionamento da estufa e o contexto da produção de olerícolas no país.
Em um desses painéis há, por exemplo, informações que, em 2002, o governo e a associação dos fazendeiros assinaram o Acordo de Adaptação, com duração de 10 anos, com o objetivo de aumentar a competitividade da produção local. Os objetivos eram: reduzir o custo de vida para os habitantes, produzir mais alimentos, com maior eficiência e garantir remuneração aos produtores para mantê-los na atividade. No período de vigência do acordo, houve uma redução entre 31-55% de preços ao consumidor. Os produtores ampliaram sua produção e incrementaram seu portfólio com novos produtos. Ainda hoje os produtos locais levam a bandeira islandesa para conhecimento dos consumidores, promovendo a produção local. Pepino é o melhor exemplo de sucesso da política, pois quase 100% da demanda está atendida hoje, mas outros vegetais seguem aumentando para valores próximos à autossuficiência.
É nesse contexto que se insere o restaurante dentro da estufa de tomate. A produção aproveita a energia geotérmica para manter o interior da estufa acima dos 20oC, há enriquecimento da atmosfera com CO2 que chega de caminhão de uma fonte natural, o substrato é pedra pomes do monte Hekla, que pode ser usado por muitos anos e que facilita o controle da umidade e a aplicação de fertilizantes. É também usada luz artificial para compensar a baixa luminosidade natural. Para aumentar a produção, colmeias de abelhas, importadas da Holanda, fazem o trabalho de polinização (https://www.koppert.com/natupol/).
Os efeitos das mudanças climáticas são mais intensos nessa parte do mundo. Em 2019, a geleira Ok foi a primeira a perder seus status de geleira no país e foi erguido um monumento para lembrar isso que tem a seguinte redação em uma placa, no Museu Perlan, na capital Reykjavík: “Ok é a primeira geleira a perder seu status de geleira. Nos próximos 200 anos, todas as geleiras devem seguir o mesmo caminho. Esse monumento é para reconhecer que nós sabemos o que está acontecendo e o que precisa ser feito. Só você sabe se nós fizemos. Agosto de 2019; 415 ppm CO2”.
Em fevereiro de 2024, ultrapassamos os 424 ppm.
Uma frase repetida para a importância de comprar terras é “Compre quanta terra puder. Não vão fabricar mais!”. Ao saber dos casos da expansão da Islândia pelo afastamento das placas tectônicas e a formação da ilha de Surtsey, foi imediata a lembrança dela.
A questão é que isso é apenas anedótico, pois, além da pequena quantidade, de fato os aumentos como na Islândia precisam de um longo tempo de maturação para serem incorporados como novas terras.
Por isso que precisamos continuar zelando pelo uso desse recurso. Um trabalho recente de colegas da Embrapa¹ contabilizou que temos perto de 28 milhões de hectares de pastagens plantadas com níveis intermediários severos de degradação com bom potencial agrícola, que potencialmente podem aumentar em 35% a área agrícola atual, com a vantagem de a nossa placa tectônica estar bem comportada.
Em relação à da Islândia, a conquista do Brasil foi bem menos estressante. Em primeiro lugar, a colonização por europeus no Brasil foi feita não numa terra hostil, inabitada, mas com seres humanos nativos estando já aqui por milhares de anos. Os colonizadores portugueses quando chegaram por aqui acreditaram que tinham descoberto, de fato, o paraíso como descrito na Bíblia.
Nem os mais de seis séculos entre a conquista da Islândia e do Brasil mudou muito o padrão de colonização e a as florestas da Mata
Atlântica foram também severamente exploradas, em especial a árvore que deu o nome ao país, que praticamente desapareceu. O estrago não foi completo, pois, sendo um país tropical, a necessidade por energia para contornar o frio é muito menor, bem como há mais biomassa e, por fim, uma enormidade de terras.
Um fato curioso é que, a Islândia é um país europeu colonizado por europeus e se tornou uma nação independente apenas em 1944, pois, até então, pertencia à Dinamarca, ou seja, 122 anos depois do Brasil se tornar livre de Portugal.
Como comentado, as correntes marítimas foram (e ainda são) grandes ativos islandeses, especialmente por garantir a fartura de pesca. A geografia brindou o Brasil com um ativo ainda mais espetacular: a floresta Amazônica, cuja existência garante um bom regime de chuvas para as regiões ao sul dela.
Basta uma espiada no mapa de chuvas no mundo, para entender sua importância: nas mesmas latitudes da região do sul da Amazônia no Brasil, os blocos continentais do sul africano e da Austrália têm cerca de oito vezes menos precipitação. No Brasil, essa mesma região é que mais concentra nossa produção agrícola, realizada praticamente toda apenas com a água das chuvas.
Para as colonizações lá e aqui, temos em comum o papel fundamental dos animais no processo, em especial de ruminantes, capazes de produzirem carne, leite, couro, lã, serem força de trabalho e terem seus dejetos usados como fertilizantes, sendo criados apenas com base em capim.
A escolha preferencial para ovinos na Islândia parece bem lógica em relação à área disponível, ao menor crescimento de biomassa no tempo e ao fornecimento de lã, fundamental no clima subártico islandês.
O Brasil, por sua vez, pode-se se dar ao luxo de ter um rebanho com mais de 200 milhões de cabeças de bovinos, mesmo com uma baixa taxa de lotação média de suas pastagens.
Estando em alta latitude, os raios do sol atingem as terras islandesas num ângulo bem oblíquo e se espalham em uma área maior, captando menos energia por metro quadrado. Aliás, ao dirigir ao longo de todo dia na Islândia sentimos a necessidade de, o tempo todo, usar o quebra-sol, por conta da posição baixa do sol em relação ao horizonte. Em função da baixa temperatura e da menor radiação solar, o crescimento dos tecidos vegetais é lento, o que faz com que ele seja de melhor qualidade. Portanto, apesar da menor biomassa, o melhor valor nutricional ajuda a melhorar o desempenho dos animais.
Com nossas forrageiras tropicais, ocorre exatamente o contrário, pois o crescimento ocorre em altas taxas e há maior lignificação dos tecidos, tanto para manter a arquitetura da planta mais ereta, como porque os compostos da lignina, junto com outros compostos secundários, são fatores de defesa da planta. No caso do nosso ambiente, o desafio de pragas e doenças é muito maior. No cômputo geral, nossa desvantagem é menor, pois temos opções no melhoramento de forrageiras e no manejo de pastagem para compensar parte da questão de qualidade e, com mais biomassa, sempre é mais fácil alimentar os animais.
Com relação ao ambiente, o Brasil teve uma vantagem em relação à Islândia, ao acordar para a importância da manutenção das riquezas naturais bem antes, pois lá a legislação ambiental foi estabelecida para valer em 1990, contra o primeiro Código Florestal do Brasil tendo sido criado em 1934. Agora, o que importa é menos a legislação e mais quanto cada país está a fazendo valer. Em ambos os países, a cobrança da sociedade é crescente.
A Islândia no início deste século fez um grande esforço para aumentar a produção em uma parceria entre o governo e produtores, com excelentes resultados. O Brasil, também, tem bons exemplos em ações de governo e aumento de produção de alimento, seja no grande investimento que fez em ciência para criar nossa agropecuária tropical de sucesso nos anos 1970, passando de importador de alimentos para grande exportador, seja em ações mais recentes, como os Planos ABC. O ABC, além de aumento de produção, evidenciou os benefícios ambientais desse pacote.
Em ambas as latitudes, portanto, fica patente ser possível juntar esforços de governantes e sociedade para mudanças de patamar na produção de alimentos ou outras necessidades de avanço. Importante reconhecer que, num país em que as abelhas fazem o trabalho de polinização, praticamente em sua totalidade, de forma gratuita, há mais chance de sucesso do que outro país em que é necessário importar esse serviço.
Por fim, fica o bom exemplo do restaurante com temática agro, que diverte, informa, alimenta, gera renda e aproxima gente da cidade do campo, algo que até já temos alguns bons exemplos, mas que ainda se trata de um grande potencial pouco explorado.
A Islândia está em uma posição do mundo em que a anomalia climática ocorre de maneira mais intensa, ou seja, a temperatura tem subido acima da média do restante do mundo. Há a preocupação com o desaparecimento das geleiras, o que traria grandes problemas hídricos, mas também com uma eventual oscilação nas correntes marítimas, que são tão importantes na regulação do clima e para a manutenção da vida marinha.
Uma ajuda da Islândia para reduzir as emissões de gases de efeito estufa (GEE) e que a faz ser o país com maior taxa de crescimento dentro da OCDE, são manufaturas de uso intensivo de energia que têm instalado suas plantas no país para aproveitar a energia geotérmica e produzir, assim, bens com menor pegada de carbono.
O Brasil, que igualmente tem uma matriz energética muito mais limpa do que a média, pode atrair investimentos semelhantes. Temos a vantagem adicional de poder produzir muita biomassa e essa ser uma estratégia de sequestro de CO2.
O que uma viagem à Islândia gera em um agrônomo brasileiro é o aprofundamento do reconhecimento que nossas vantagens competitivas são ainda maiores do que apenas pela fartura natural de fatores de produção, mas um país livre de fontes de desastres naturais.
Por exemplo, as estradas na Islândia, apesar de muito bem conservadas, são de uma simplicidade quase monástica, com várias pontes com apenas uma faixa, passando um veículo de cada vez. Nitidamente, o investimento é feito de maneira que, havendo a destruição por causa de atividade vulcânica, a reconstrução será mais fácil e barata.
Poder fazer a infraestrutura sem ter que fazer esse tipo de consideração é algo que é normal para nós e só nos damos conta de tanta sorte que temos, quando a roupa da alma por um tempo é islandesa.
Em tempo: o objetivo de testemunhar a Aurora Boreal foi atingido e muito apreciado.
Imagem 1.
Vista dos rolões de feno na área do hotel em Kirkjubæjarklaustur, Islândia.
Imagem 2.
Vista da geleira do Eyjafjallajökull para o arquipélago de Westman, na qual, ao fundo pode ser visto a ilha de Surtsey, criada por erupções vulcânicas submarinas em 1963.
Imagem 3.
O cavalo islandês.
Imagem 4.
Restaurante Fridheimar: almoço dentro de estufa de tomate.
¹ https://doi.org/10.3390/land13020200, Bolfe, É.L.; Victoria, D.d.C.; Sano, E.E.; Bayma, G.; Massruhá, S.M.F.S.; de Oliveira, A.F. Potential for Agricultural Expansion in Degraded Pasture Lands in Brazil Based on Geospatial Databases. Land 2024, 13, 200.
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