Protetores dos animais e defensores do rodeio começam, finalmente, a se entender. O testemunho vem da festa de peão boiadeiro, encerrada em Barretos. Quem provocou a inusitada convergência foi o laço de corda. Melhor dizendo, sua eliminação.
Há uma década esquentou a polêmica sobre as provas de montaria. Baseada em denúncias de maus tratos, a associação defensora dos animais solicitou ao Ministério Público a proibição das provas. Afinal, a Constituição Federal veda práticas que submetam os animais à crueldade. Artigo 225, inciso VII.
O ponto da discórdia recai, principalmente, sobre a utilização do sedém. Tal apetrecho, uma espécie de cinta estreita, aperta a virilha do animal na saída do brete, fazendo-o saltar. Nessa hora, provocada a brabeza do bicho, se testa a perícia do peão. Estimulando reação intempestiva no animal, ele pula como o diabo.
Estudos mostraram, todavia, que a utilização do sedém, desde que elaborado com material macio, lã ou algodão, não provoca injúria. No máximo, causa um desconforto, cócegas. Quem liderou esse trabalho de pesquisa, conhecido como projeto Sedém, foi Tenório de Vasconcelos, professor da Unesp, em Jaboticabal.
Médico-veterinário, apaixonado por animais, o professor Tenório resolveu, com método adequado, analisar as conseqüências clínicas do uso do sedém. E comprovou, cientificamente, que os males eram irrelevantes. Poderia, portanto, ser liberado. Acabou perseguido pelas entidades protetoras de animais.
O rodeio de animais iniciou sua regulamentação oficial em 1998, a partir da resolução 18, baixada pela Secretaria da Agricultura paulista. Mais tarde, a lei federal nº 10 519/02 implantou nacionalmente os novos conceitos do evento. Normativos asseguram a realização das festas de peão boiadeiro, mas impõem obrigações e responsabilidades, visando proteger os animais do mau trato.
A proibição do uso de esporas com rosetas pontiagudas elimina o sangramento dos eqüinos. Choques elétricos não mais se permitem. Alimentação adequada aos bois, sanidade perfeita, vacinação em dia. Arena macia, ambulância na pista, médicos de prontidão. O rodeio, enfim profissionalizado, se transformou em esporte. Polêmico, tanto quanto o boxe ou as corridas de carros, mas sadio.
Havia, porém, um grave senão: as provas de laço. A laçada, sem que muitos percebam, é mais maléfica que o sedém. Tanto o laço no bezerro, individual, como o laço em dupla, machucam constantemente os animais. Pois nesse ano, o Clube dos Independentes de Barretos suspendeu a realização das provas de laço em seu rodeio.
A decisão merece aplauso. Pressionados pelo Ministério Público, os conselheiros reconheceram a supremacia da posição sempre defendida pelo Emílio Carlos, o Cacá, maior expert do rodeio nacional. O mundo evolui.
O inimigo número 1 das provas de laço, verdadeiro abnegado, chama-se Tenório de Vasconcelos. Sim, ele mesmo. O professor, esculachado no passado pelos defensores dos animais, torna-se hoje o grande homenageado da bezerrada nacional.
O pesquisador provou, em testes controlados, que o tranco no pescoço do bezerro, ao ser laçado e seguro pelo cavaleiro na chincha da sela, judia irremediavelmente do bichinho. Mais. Ao ser arremessado no chão e pisoteado, para que permita lhe amarrarem as patas, sofre em demasia. Por essa razão, nos EUA, esse tipo de competição, chamada break-away, não exige o amarrio do animal. Como forma de proteção, obriga ainda, na corda, existir um dispositivo que se rompe sob pressão, amortecendo a laçada. Parece razoável.
Já a prova do laço em duplas não apresenta solução. Mesmo utilizando animais mais crescidos, arranca chifres, orelhas, arrebenta tendão, dilacera músculos da pata traseira. Ao ser esticada a corda, a canela do bezerro esquenta até 140º, queimando o couro do coitado. Terrível fricção.
De vilão, por comprovar a inocuidade do sedém, Tenório passou a herói dos ambientalistas. Virou testemunha-chave da promotoria pública na luta para banir as provas de laço. Nesse período, injustiçado, enfrentou dura doença que lhe roubou uma perna. Mas nunca arrefeceu na defesa da análise técnica contra a conversa fácil. Ganhou duas vezes.
“Quanto mais velho fico, maior a tendência que tenho de duvidar do meu próprio julgamento sobre os outros”. A afirmação, de 1787, pertence a Benjamin Franklin, ao discursar na sessão que aprovou a Constituição norte-americana. A frase conforta e faz repensar as infâmias proferidas contra o aguerrido professor da Unesp.
O aprimoramento dos rodeios pode bem servir de exemplo contra o raciocínio polarizado que permeia, com freqüência exagerada, o debate nacional. A dicotomia do pensamento, essa mania ocidental de opor o bem contra o mal, nem sempre auxilia a superação dos dilemas que afligem a sociedade. A intolerância e o fundamentalismo produzem dogmas, nunca raciocínios virtuosos.
O pior dos ranços maniqueístas, nos temas do campo, se expressa na estúpida polaridade dos “ruralistas versus ambientalistas”. Uns depredam, outros protegem. Besteira. A inteligência recomenda, sempre, apostar na síntese. O caminho do meio, certamente, produzirá o agricultor ecológico. Aqui mora o futuro.
Divergências culturais e religiosas, essencialmente, impedem o casamento entre essas duas tribos. Protetores de animais e os defensores do rodeio, entretanto, começaram a flertar. Seus olhares, antes opostos, já se encontram. Sorte da sociedade.
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