HÁ MUITAS maneiras de impedir que o cidadão recorra à Justiça para defender seus direitos. Uma delas, que os brasileiros conhecem bem, foi ensinada aos militares pelo jurista Chico Campos em abril de 1964: consiste em, pura e simplesmente, decretar que é vedada à Justiça apreciar os atos em que o governo ditatorial alegar estar exercendo poderes revolucionários. Agora, estamos diante de uma nova conspiração.
Trata-se da ameaça explícita do governo de criar versão própria da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU, de 1948.
Um pretexto para estabelecer atalhos e criar entraves ao reconhecimento até de direitos humanos consagrados, como a propriedade e a liberdade de imprensa, que, de princípios indiscutíveis, passam a depender de instâncias administrativas ou sindicais, antes que a Justiça possa reconhecê-los ou preservá-los. A propriedade privada, um dos 17 artigos da primeira Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa, de 1789, perderá a proteção da Justiça brasileira se persistir a versão do decreto.
Outra medida inédita prevê um
ranking, dominado por grupos sindicais e administrativos, para avaliar se os órgãos de comunicação podem receber propaganda ou patrocínios, numa confissão tácita de que a distribuição de verbas publicitárias oficiais não é feita por critérios técnicos em que se avaliam a eficácia dos veículos.
Assim, não avançamos. Democracia é privilégio de sociedades desenvolvidas que compreendem o valor da tolerância, a importância dos direitos humanos e a necessidade de respeitar o princípio da igualdade de todos os cidadãos perante a lei.
E, no Brasil, justiça, democracia e direitos humanos são valores consensuais. Tanto que, sob o comando do ex-ministro da Justiça José Gregori, nosso país conquistou prêmio internacional, concedido pela ONU, por ter feito, de forma competente, a implantação, em 1996, de um consistente programa nacional de direitos humanos. Em 2002, o segundo programa deu continuidade aos avanços, reconhecidos internacionalmente.
No novo Programa Nacional dos Direitos Humanos, PNDH-3, o desenho é outro: saem a democracia, a justiça, a tolerância e o consenso e entra a velha visão esquerdista e ideológica que a humanidade enterrou sem lágrimas nas últimas décadas, depois de muito sofrimento e muita miséria.
Direitos humanos, na forma aprovada pelo decreto 7.037, parece ser apenas a máscara benigna e traiçoeira que oculta a face terrível dos demônios que grupos radicais e sectários se recusam a sepultar.
Aproveitando-se do sucesso da economia capitalista e globalizada do Brasil, para o que em nada contribuíram as ideias, os valores e a visão do mundo de setores radicais do PT e dos movimentos que o sustentam, atiram aos brasileiros essa plataforma totalitária. Com que propósito?
Duas ideias me ocorrem: uma possível "satisfação", em fim de governo, a velhos aliados da esquerda ideológica ou então, e seria mais grave, uma tentativa de envenenar e dividir a sociedade brasileira com um debate (esquerda revolucionária x democracia) que, no resto do mundo desenvolvido, é coisa do passado, assunto de museus ou de faculdades de história.
O documento, cuja íntegra tem mais de 80 páginas, contém equívocos inaceitáveis. Ali, o agronegócio é considerado instituição suspeita e desprezível. Tanto que até liminares, um dos instrumentos jurídicos mais essenciais no caso de invasões de terra, por terem efeito imediato, só poderão ser concedidas depois de realizados procedimentos administrativos e "conciliatórios". Não há prazos previstos aqui, e os procedimentos poderão ser tão numerosos que tornarão inócuas as providências de urgência reclamadas quando há desrespeito ao direito de propriedade.
Cumpre lembrar, a propósito, que o acesso à Justiça com a devida celeridade é um dos direitos humanos garantidos na Constituição a todos nós, brasileiros e brasileiras.
Dificultar a reintegração de posse é estimular invasões de terra. Não podemos esquecer, igualmente, que os procedimentos "conciliatórios" e burocráticos estariam à mercê de integrantes do MST, que hoje controla, acintosamente, postos de comando no Incra e no Ministério do Desenvolvimento Agrário. A Justiça não pode, em nenhuma circunstância, ser refém de burocracia alguma.
Não é por acaso que só as questões específicas que reafirmam os artigos da Declaração dos Direitos Humanos da ONU, que são parcela mínima no texto, merecem apoio. Os demais pontos não passam de uma tentativa típica de camuflar delírios de dominação autoritária com aparentes manifestações democráticas.
* KÁTIA ABREU é senadora da República pelo DEM-TO e presidente da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil). Artigo publicado no Jornal Folha de S. Paulo de 12/01/2010.
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