Hoje vamos falar sobre a taxa de reposição entre o boi gordo e o bezerro. Hoje o texto será longo.
Tenho escutado nos últimos meses comentários ruins sobre esse tradicional indicador da pecuária. O que o pessoal tem falado gira mais ou menos ao redor desses exemplos:
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“A taxa de reposição não importa mais.”
• “Essa é uma medição ultrapassada.”
• “A relação de troca tem caído nas últimas décadas e se acentuou nos últimos anos.”
• “A reposição nunca mais voltará a subir como nos últimos anos.”
• “A realidade de agora adiante é de bezerro caro e arroba barata.”
• “As técnicas modernas de engorda aumentam a demanda por bezerros e forçam permanentemente a taxa de reposição para baixo.”
• “Hoje deixar dinheiro investido rende o mesmo que a engorda do bezerro. Muitos estão tirando dinheiro do banco e comprando animais. Daí a pressão de alta no bezerro.”
• “A pecuária mudou.”
Acho que já deu para pegar a idéia.
Faz tempo que estou esperando que isso acontecesse na pecuária. É uma coisa rara, realmente.
Sabe, essas coisas também acontecem em outras freguesias. Não deixa de ser curioso. Não deixa de ser raro. O fenômeno, quero dizer. Vira e mexe tem um mercado em que isso está acontecendo. Me veio na cabeça agora ouro, ações, petróleo e taxas de juros passando por isso. É claro, estou falando sobre as crenças que se existem sobre o funcionamento de cada mercado específico e quando esses
pilares, eventualmente, são questionados.
No nosso caso, no mercado do boi, temos alguns fundamentos que regem a atividade. Não estou falando sobre as febres de otimismo ou pessimismo atingindo o mercado quando ele está respectivamente no pico ou no fundo do poço. Não. Essas modas são passageiras. São, diríamos, inocentes. Não levam ao questionamento do mercado em si.
Me refiro sobre questionamentos de coisas mais profundas. Aqui, no nosso caso, a queda da arroba do boi e o fortalecimento do bezerro estão levando o pessoal a questionar um dos pilares da pecuária, que é exatamente a relação entre o boi gordo e o bezerro, a famosa taxa de reposição.
Tenho minhas dúvidas se dá para sustentar esse tipo de argumento. Ainda acho a taxa de reposição muito importante. Para falar a verdade, até hoje não vi nem estudei, nem percebi nada analisando esses últimos 15 anos de mercado que contradissesse a sua importância.
Porque estou dizendo isso? Pelo motivo de que esses comentários sobre a taxa de reposição não existiam há um ano. Isso só me leva a novamente acreditar no poder do “mercado” em moldar a opinião do povo. Se a reposição está baixa agora, surge um monte de argumentos para provar que ela, a reposição, não vale mais. No mercado é sempre assim.
O mercado, como diz o ditado, molda opiniões.
Isso significa também que a moda é passageira? Não sei, caro leitor. Para mim significa um ponto de inflexão importantíssimo no mercado, como se estivéssemos passando por algum tipo de rito de passagem.
A impressão que tenho é que agora estamos prontos para dar o próximo passo, em se tratando do mercado e seus preços.
Mas é claro que não fecho as portas. A gente tem que ficar sempre com os olhos bem abertos e com a mente aberta. De fato o mercado pode estar mudando, mas a moral da história quando esse tipo de encruzilhada aconteceu anteriormente em outros mercados diz que os fundamentos ainda valem, no final das contas. Nunca é diferente, ou seja, o comentário de que dessa vez o mercado e a situação é diferente
acabou sendo uma das frases mais repetidas nos mercados e em sua grande maioria das vezes se provou falsa.
Não vamos aqui tentar provar a importância da taxa de reposição. O fato de ela estar sendo tão comentada e questionada ultimamente meio que prova esse ponto. O que vamos fazer aqui é contribuir ao debate, jogando mais luz ao assunto e mostrando alguns gráficos. Escrevi esse texto com prazer, caro leitor, na mesma medida que deu muito trabalho para levantar alguns desses gráficos. Valeu a pena.
Aprendi muito sobre a taxa de reposição.
Vamos lá. Primeiro o mais importante. O gráfico da taxa de reposição.
Esse é o gráfico que está sendo tão questionado ultimamente. Repare que a partir de 2008 até hoje, a taxa de reposição está oscilando muito abaixo do que poderia ser considerada uma oscilação normal em relação ao seu comportamento passado.
Isto daí já nos mostra o quanto são suspeitos os questionamentos atuais. O cidadão está se baseando em sua argumentação nos dois últimos anos de mercado e ignorando todo o resto. Mais preocupante ainda — está pegando esses dois anos como norma e projetando a mesma coisa para o futuro.
Deixe-me colocar aqui novamente o gráfico da reposição, mas sobreposto com o gráfico do preço da arroba do boi.
Um pequeno estudo demonstrado nessas setas mostra uma relação entre os pontos de inflexão do preço da arroba ocorrem nos pontos extremos de baixa na taxa de reposição. Ou seja, a história nos mostra que a arroba está barata quando a taxa de reposição está muito baixa.
Como não poderia deixar de ser, a anomalia nessa relação está ocorrendo nesses últimos dois anos.
Estamos passando por uma reposição baixa, das piores da história, e a arroba do boi não subiu o suficiente para ajustar essa equação.
Como isso pode ser possível? Bom, aqui temos que parar e voltar uns capítulos nessa história. O que é, afinal, a pecuária? Em linhas gerais, a pecuária é o que acontece com os bezerros machos e fêmeas ao longo de suas vidas, desde o nascimento, sua desmama, seu tempo nos pastos crescendo, como o pessoal diz, recriando, e depois parte para a engorda e depois de gordo, o abate, no caso dos machos.
No caso das fêmeas, parte dela vai para a cria (e bem lá na frente, o seu descarte para abate) e parte segue o mesmo destino dos bezerros machos, indo direto para a engorda. Daí esses animais são destrinchados e vendidos para supermercados, açougues, cozinhas industriais e hotéis. É um resumão da atividade bem grosseiro só para fins de facilitar nosso argumento.
Agora a questão importante que precisa ser entendida é a seguinte. Esses elos da pecuária — criador, recriador, invernista, frigorífico, distribuição e mercado consumidor — seguem seus fluxos de forma independente, porém estão conectados aos elos anterior e posterior, somente. Cada um tem seus problemas, suas complexidades, seus desafios e sua forma organizacional. Essa é a natureza do nosso mercado e ela não mudará enquanto prevalecer a forma atual do contrato social — o sistema de propriedade privada com fins de lucro existes no mundo. Esse é o status quo da pecuária que tantos jogam pedra.
O que acontece em um elo da cadeia não impacta diretamente nos elos distantes. Somente nos elos mais próximos. Ou seja, cada elo trabalha até o limite de sua influência nos elos seguintes.
Então, vejamos. A cria e recria não são ligadas diretamente aos frigoríficos. Entre eles existe a engorda, os invernistas (como seu editor) no meio. E o que está acontecendo com os invernistas atualmente?
Lembre-se que a taxa de reposição é muito utilizada pelos invernistas. Do lado da cria, o invernista recebe uma pressão enorme de oferta de falta de animais reflexo direto do enorme abate de fêmeas ocorrido até 2007. Abate-se mais vacas, tem-se menos bezerros. O preço do bezerro sobe. Com a alta do preço do bezerro, o criador para de vender vaca e começa a retê-la nos pastos. A arroba do boi sobe.
O ano de 2008 iria entrar para a história como um ano fenomenal de alta da arroba se não fosse o estouro da crise de crédito mundial. De fato, a arroba subiu até junho de 2008, mas daí estourou a crise e seus reflexos na atividade pecuária foram sentidos na pele pelos frigoríficos.
Os frigoríficos são o elo seguinte ao dos invernistas. A crise dos frigoríficos foi tão grande que derrubou Sadia, Independência, Bertin, Frialto e esse último desses dias que não me lembro o nome.
Essa situação ainda está longe de ser resolvida. É só olhar para o comportamento das compras dos frigoríficos hoje em dia. São raros os dias em que a escala de abate passa de seis dias. Quando passa, já é pressão de baixa na arroba. Isso, meus caros, chama-se cautela. Gato escaldado tem medo de água fria.
Então, por um lado o invernista recebe o impacto normal do ciclo pecuário, ciclo esse que não modificou seu curso com a crise. Do outro lado, o invernista sofre o impacto da crise de crédito que, no popular, derrubou o chapéu dos frigoríficos. Soma-se a isso também a diminuição das exportações, pois os importadores estão sofrendo os mesmos problemas de crédito que os frigoríficos sofreram, senão pior.
Mas a roda não deixa de girar. O sol nasceu hoje e vai se por daqui a pouco. Os bezerros e bezerras vão crescendo e seguindo seu curso. A janela de falta de animais que é sentida hoje pelo invernista será sentida amanhã pelos frigoríficos. Eles não terão alternativa — assim como o invernista não tem alternativa, senão capitular — eles terão que aumentar o preço da arroba para voltar a incentivar a atividade de engorda.
Abaixo, deixe-me colocar um gráfico que nunca coloquei aqui. Tenho ele aqui comigo, fazia tempo que não o atualizava, mas uma conversa com um corretor da bolsa me fez lembrar deste gráfico.
Esse gráfico mostra a evolução da engorda do bezerro, sua taxa operacional de lucros. Não levo em consideração a remuneração da terra nessa análise.
O que é esse gráfico? É o resultado da compra do bezerro, comissão de compra e frete, os custos de manutenção da fazenda/engorda por 36 meses e a venda desse animal para o frigorífico.
Todos os dados estão disponíveis e são públicos, menos os custos de produção, que utilizei os meus para facilitar os cálculos, ajustando um pouco os custos para a realidade dessa modalidade de engorda.
Tive que fazer isso porque a gente não engorda bezerros, e exige um pequeno ajuste por causa da capacidade de suporte de animais (não confundir animais com UA) numa propriedade que faz cria-recria- engorda é ligeiramente maior que de uma fazenda que só faz engorda.
Da venda do boi gordo tiro a inflação no período e o resultado é esse aí. Um invernista que está abatendo agora em maio seu boi gordo provavelmente comprou o bezerro em 2007. Hoje ele tem um resultado, um lucro operacional, por assim dizer, de 2%. É historicamente muito baixo, como você pode ver no gráfico. De 2% para baixo na prática o invernista não está tendo lucro na atividade. O que é pior é que ele tem seus gastos pessoais, seus investimentos, então atualmente o elo da engorda está se
descapitalizando.
Cruzando as informações dos gráficos até agora, temos a seguinte situação. Quando a taxa de reposição está ruim, o lucro do invernista, três anos depois, será ruim.
Quando a reposição está boa, o lucro do invernista, três anos depois, será bom. Isso impacta diretamente na disponibilidade de animal para os frigoríficos. Ou seja, se a atividade não está remunerando um mínimo, há uma diminuição na oferta agregada de animais e os preços da arroba sobem, puxando a taxa de reposição para cima.
Esse é um conceito bem simples que é pela primeira vez demonstrado na prática por gráficos. É um conceito antigo, que os fazendeiros mais velhos, os avós e os pais da geração atual conhecem e tanto respeitam.
De certa forma, esse gráfico é uma representação do conhecimento acumulado por gerações de invernistas. Esse conceito pode ser resumido em dois ditados.
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“A taxa de reposição entre o boi e o bezerro é o principal indicador da atividade.”
• “O lucro do boi está na compra, e não na venda.”
Então, caro leitor, essa é a mensagem. De fato a taxa de reposição está passando por momentos difíceis.
Ela está testando a lógica do mercado pecuário. O invernista hoje é o que mais está sofrendo com o encarecimento do bezerro e boi magro por um lado, e a relutância (até agora) da arroba não subir de preço do outro. Isso vem desde 2008, e a impressão que dá, sem dúvida, é que essa coisa veio para ficar.
Mas não abandonaria tão rápido assim um dos pilares da pecuária por causa de dois anos em que ela veio fora do normal. A diferença de preços e as janelas de evolução dos mercados do bezerro e boi gordo são diferentes.
Vamos combinar o seguinte. Se nos próximos cinco anos a taxa de reposição não voltar a oscilar, ou realmente ficar muito fora de base, a gente arruma outra coisa para substituí-la, ok?
Até lá, não vamos inventar moda e nem desmerecer o ensinamento do pessoal mais velho na atividade.