Texto publicado no jornal O Estado de So Paulo em 21 de julho de 2010.
Quando o debate internacional sobre o programa de enriquecimento de urnio do Ir estava bombando, o ministro Celso Amorim escreveu artigo em jornal estrangeiro no qual, ao defender a crescente importncia dos pases emergentes no cenrio internacional, exaltou, entre outros fatos, as conquistas obtidas por esse grupo de pases na Rodada Doha da Organizao Mundial do Comrcio (OMC). Colocar na mesma cesta uma negociao com objetivos comerciais e questes de segurana e governana global revela - sem nenhum julgamento de valor da magnitude da importncia de cada uma delas - um grande problema da poltica externa brasileira: o desinteresse em reconhecer que diplomacia poltica e poltica comercial so uma via de mo dupla que no se estabelece se a primeira subjuga a segunda. Viabilizar o desenvolvimento destas gmeas siamesas, portanto, a sada disponvel para que a poltica comercial volte a florescer no Brasil.
No se pe em dvida o objetivo definido pela poltica externa brasileira de tornar o Brasil protagonista mundial em temas como segurana e paz, ajuda humanitria e, com um pouco de otimismo, governana global e integrao regional. Mas ser possvel atingir esse protagonismo com uma poltica comercial nanica? A meu ver, no.
Embora essa busca por protagonismo possa ser exercida de muitas outras formas que no as escolhidas pelo governo Lula, muitas razes podem ser evocadas para justificar a opo feita pela diplomacia no poder. Alm disso, o Itamaraty uma burocracia reconhecida como competente e capacitada para dialogar com outras naes e, principalmente, com o devido grau hierrquico e estabilidade necessrios para que os diplomatas sigam risca as opes tomadas pelos cabeas do Ministrio.
At pouco tempo atrs a diplomacia brasileira, em suas declaraes pblicas, ainda se preocupava em explicar as decises tomadas em poltica comercial, sobretudo no contexto da Rodada Doha, com argumentos de comrcio exterior. Aps o episdio das negociaes com o Ir e encorajada por diversas reaes positivas no exterior quanto ao papel do Brasil no assunto, a diplomacia esqueceu suscetibilidades e deixou aflorar a real razo das aes de poltica externa do Pas: a busca de protagonismo internacional na rea de segurana e governana global.
E as recentes afirmaes enaltecendo a criao do G-20 da OMC como estratgia de mudana na relao de poder nas negociaes comerciais multilaterais jogaram uma p de cal na esperana de quem, como eu, ainda acreditava que havia alguma motivao comercial nas aes da diplomacia na Rodada Doha.
A culpa pelo esquecimento da poltica comercial, ao longo do tempo e no governo atual, no s do Itamaraty. Num pas que ainda utiliza tarifas de importao como um mecanismo dmod de poltica industrial no se poderia esperar nada diferente.
Sem presso alguma das demais reas do governo, do Congresso Nacional e dos setores industriais para dar resultados na rea comercial, a diplomacia encontrou um meio de cultura ideal para privilegiar o componente poltico e negligenciar o componente comercial da poltica externa.
Com as coisas s claras na poltica externa, fica mais fcil explicar os insucessos do Brasil em liderar o Mercosul para fazer um acordo de comrcio com a Unio Europia e o enterro da negociao da rea de Livre Comrcio das Amricas. O governo brasileiro simplesmente no tinha interesse em finalizar os dois acordos porque nenhum deles contribua para a estratgia de protagonismo mundial. Agora que o Brasil j se tornou um protagonista mundial e finalmente, na perspectiva da diplomacia, colocou o "p na porta" no jogo da segurana global, hora de o Itamaraty colaborar para que a poltica comercial caminhe por suas prprias pernas.
O tema de poltica comercial est a um passo de ser sepultado no Brasil. Como se as razes de sempre no fossem suficientes - alta carga tributria, elevado custo de logstica, baixo nvel de investimento em inovao e cmbio valorizado -, o argumento de que a economia se est desindustrializando pela concorrncia dos produtos importados e pela crescente concentrao da pauta exportadora em
commodities pode levar o Pas a esquecer por mais quatro anos os acordos comerciais. V-se que a poltica comercial precisa urgentemente de um patrocinador no governo, e esse patrocinador, ironicamente, tem o mesmo nome do seu algoz: Itamaraty.
Na busca por protagonismo mundial nos ltimos oito anos, o Brasil abriu mo de quatro grandes benefcios que resultam de acordos comerciais: promoo de investimentos, transferncia de tecnologia e inovao; apoio a mecanismos de agregao de valor s exportaes, estimulando o crescimento de ambos os setores de valor adicionado e de
commodities; suporte estratgia de busca pelo protagonismo internacional; fonte de presso para a execuo das reformas estruturais de que o setor industrial necessita.
Para no excluirmos a poltica comercial de vez da agenda, duas mudanas so necessrias. A primeira governo e setores industriais reconhecerem que acordos comerciais promovem o ganho relativo, e no o absoluto. Mesmo que um acordo comercial no promova ganhos absolutos evidentes para a economia brasileira (por exemplo, no saldo entre setores ganhadores e perdedores, que um raciocnio simplista de avaliao de acordos muitas vezes utilizado no Pas), os ganhos relativos associados a se ter acesso privilegiado em comparao a outros pases precisam ser avaliados. A segunda dar independncia para a formulao da poltica comercial, tirando de hibernao forada a rea econmica do Itamaraty e coordenando suas aes com as polticas de promoo comercial e as aes de promoo de investimento. Assim, o Pas pode perseguir os seus objetivos de diplomacia poltica sem canibalizar os de poltica comercial.
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