Texto publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 18 de agosto de 2010.
Não interessando de que lado do debate da reforma do Código Florestal se está, pelo menos um consenso existe entre os interessados no assunto: tanto o código vigente quanto o novo, em discussão no Congresso Nacional, carecem de ciência que dê suporte às obrigações impostas sobre o setor produtivo. Já passou da hora de deixar os argumentos emotivos de lado - do tipo "coitados dos produtores de café do sul de Minas Gerais, porque agora todos eles são bandidos" e "coitados dos cientistas bonzinhos que ficaram alijados do processo de discussão da reforma porque nem sequer foram consultados" - e partir para um debate com base mais fatos do que em crenças, no qual as segundas intenções "saem do armário”.
Do argumento retórico de que agropecuária e meio ambiente podem conviver em harmonia num mundo ideal, como propagado pelo Talking Heads em (Nothing but) Flowers, é preciso reconhecer que o equilíbrio entre produção agropecuária e conservação resulta de um choque de concessões de ambos os lados.
Os dois grandes temas que sustentam a discussão da reforma do Código Florestal são o chamado "passivo ambiental" e o controle do desmatamento. A regra de bolso é que o passivo precisa ser resolvido - lembrando que não há como definir, preto no branco, quais produtores atuais são responsáveis diretos por ele, embora saibamos que muitos deles são e outros tantos, não - sem estimular avanço na fronteira. Melhor dizendo, orientando o avanço na fronteira nas regiões onde isso faz sentido, mas com taxas de conversão muito menores do que as vistas no Brasil nos anos passados. É preciso que se diga que resolver o passivo não significa isentar os produtores das suas obrigações com a reserva legal e, sobretudo, com as áreas de preservação permanente (APPs), tampouco estipular desmatamento zero em todos os biomas, mesmo que apenas para um período de cinco anos.
Um argumento-chave utilizado no debate é o da disponibilidade de terra. De um lado, argumenta-se que o cumprimento ao pé de letra do código reduziria a área disponível para produção agropecuária. De outro, que a expansão da agricultura pode ocorrer integralmente sobre pastagens sem a necessidade de incorporação de novas áreas na fronteira. O primeiro argumento está errado e o segundo é retórico.
Feitos a partir de uma metodologia consistente e baseada no que se tem de melhor em tratamento de dados em sistemas de informação geográfica no Brasil, dados do professor Gerd Sparoveck me permitem concluir que ainda existem cerca de 36 milhões de hectares, sendo 68% (25 milhões de ha) nos Cerrados de Maranhão, Piauí, Tocantins, Bahia e Centro-Oeste, disponíveis para expansão do setor agrícola. Esse montante assume que as novas áreas a serem abertas respeitarão reserva legal e APPs e que estão localizadas em áreas com condições de declividade, solo e clima boas ou ótimas para a produção de grãos. Sem considerar as condições de aptidão, a disponibilidade pula para 79 milhões de hectares (51 milhões nos Cerrados).
Considerando que na mata atlântica já é proibido desmatar e que um pacto pelo desmatamento zero no bioma Amazônia tem grandes chances de ser viabilizado, a área disponível para expansão é de 25 milhões de hectares, sendo a diferença em relação àqueles 79 milhões hectares a área que não faz sentido desmatar. O professor Gerd estima em 88 milhões de hectares o passivo, sendo metade de reserva legal e a outra metade em APPs.
O Brasil deve abrir mão dos 25 milhões de hectares de Cerrado com uma moratória contra o desmatamento? Não. O Brasil vai gastar todo esse estoque de terra aumentando produção agrícola? Se depender do mercado, também não.
Os dados do laboratório de sensoriamento remoto da Universidade Federal de Goiás (Lapig) indicam que o desmatamento médio anual dos Cerrados entre 2002 e 2007 foi de 551 mil hectares. Ou seja, para usar os 25 milhões de hectares no ritmo atual de expansão da fronteira - estou assumindo que todo o desmatamento dos Cerrados avaliado pelo Lapig foi fruto da expansão de grãos, em maior parte, e pastagens, em menor parte - serão necessários 45 anos.
No futuro, no entanto, podemos esperar um ritmo de desmatamento inferior ao observado nos anos anteriores e, por consequência, maior crescimento de lavouras sobre pastagens. Não só porque a fiscalização está cada vez mais forte, mas também porque novas restrições serão impostas. Nesse sentido, no contexto do Estudo de Baixo Carbono para o Brasil, coordenado pelo Banco Mundial, fizemos, no Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone), uma projeção para a expansão do setor agrícola no País até 2030. Grãos, cana-de-açúcar e florestas plantadas vão necessitar de mais 14,9 milhões de hectares, sendo que as pastagens acomodarão cerca de 10 milhões. A diferença, 4,9 milhões, ocorrerá pela conversão de áreas de Cerrados. Dado que as projeções são de 2008 a 2030, estamos falando de um desmatamento anual médio de 200 mil hectares. Se o futuro for como estamos imaginando, precisaremos de 126 anos para "gastar" todo o Cerrado apto para produção agrícola com uma taxa de expansão deste setor que atende à crescente demanda mundial. Considerando os 51 milhões de hectares de Cerrado disponíveis, precisaremos de 3,5 gerações para usar toda a área disponível.
A verdade é que o setor agrícola e os benefícios que ele traz para a sociedade brasileira e os consumidores mundiais vão além da discussão da reforma e até mesmo da existência do Código Florestal. Por razões de mercado, grande parte da expansão das lavouras vai ocorrer sobre as pastagens, promovendo a intensificação da pecuária propalada por todos os interessados no tema do Código Florestal. Manter a competitividade da agricultura de grãos do Brasil, no entanto, passa pelo uso inteligente das áreas de Cerrado, condição quase que exclusiva do Brasil no mundo. Temos 126 anos para administrar isso.