Conheci o Zé Rainha em 1995. Parecia um líder verdadeiro, expoente da infantaria do MST. Tempos idealistas. Depois começou sua degradação moral. Agora, preso por corrupção, revela o lado obscuro da reforma agrária brasileira.
Alto, magro, parecido com Antônio Conselheiro, messiânico que comandou a resistência de Canudos, Rainha procurou-me no Incra para ajudá-lo a implantar um pólo agroindustrial nas terras do Pontal do Paranapanema paulista. Ousado, o projeto fazia sentido. Financiamento de R$3,8 milhões atenderia 1.600 famílias assentadas na Gleba XV, em Teodoro Sampaio (SP).
Assim nasceu a Cooperativa de Comercialização e Prestação de Serviços (Cocamp).
Além das instalações físicas, novos recursos permitiram ainda a compra de 42 tratores e vários caminhões, frota com a qual o líder barbudo desfilou pelas ruas da cidade cantando sua glória. Depois vieram o laticínio, as balanças e dois enormes silos de cereais. Tudo somado, R$8,5 milhões irrigaram esta boa ideia da reforma agrária cooperativada.
Passou um tempo. Em 1997, novamente recebi Zé Rainha em meu gabinete, agora na Secretaria de Agricultura paulista. Voluptuoso, demandava mais recursos, do governo do Estado, para sua obra. Propunha arrematar uma fecularia de mandioca perto de Presidente Prudente. Nesse momento comecei a desconfiar do seu caráter.
Primeiro, porque sabia que a cooperativa mal engatinhava. Acusações sobre sumidouro de recursos surgiam entre os assentados. Colocar mais dinheiro lá seria temerário. Segundo, sua conversa beirava uma negociação esdrúxula: se o financiamento fosse concedido, ele daria uma maneirada nas invasões de terras.
Senão iria radicalizar o conflito contra os proprietários rurais. Chantagem pura.
Quem já negociou conflito agrário sabe que assim opera a pragmática política do MST. A questão, todavia, não era apenas política, mas envolvia dinheiro público. Resumo da história: jamais vingou aquele projeto agroindustrial. Os tratores desapareceram, as máquinas industriais nunca funcionaram. A anunciada redenção da reforma agrária virou um elefante branco. Sumiu a dinheirama.
Fotos e relatos obtidos dos próprios assentados, que desgraçadamente se tornaram solidários nas dívidas contraídas pelo delirante líder, foram publicadas em meu livro O Carma da Terra no Brasil (2004). Nele mostrei que a gula do Zé Rainha não era uma exceção. Expus também o projeto da Fazenda Rio Branco, em Parauapebas (PA), outro vergonhoso fracasso. Triste mistura de incompetência e malandragem na reforma agrária.
A dita esquerda recebeu meus escritos com desdém semelhante ao externado por Gilberto Carvalho, ministro com assento no Palácio do Planalto. Ele lamentou a prisão do Zé Rainha, dizendo que ela "tumultua o processo da reforma agrária" e atrapalha o relacionamento do governo com os movimentos sociais. Misturou alhos com bugalhos.
O descaminho da reforma agrária brasileira começou no início da década de 1990, quando o MST optou por invadir propriedades rurais. Foices e facões forçavam a desapropriação de fazendas pelo Incra. A novata entidade buscava com sua beligerância assumir o protagonismo da luta camponesa no País, até então entregue à velha Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag). Com tradição comunista, esta se acomodara nos meandros do poder.
Apoiado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e pelo PT, o MST avançou ferozmente na luta pela terra. Militarmente organizados, fartos em recursos, os invasores ganharam a mídia e encantaram a opinião pública. O inegável sucesso de sua estratégia política, porém, gerou o imponderável: as quadrilhas rurais.
Os neorrevolucionários abriram brechas para que, em vários cantos do País, bandoleiros disfarçados de sem-terra partissem para saquear e depredar fazendas. Roubo de gado, tratores e arames de cerca, fogo, moradores feitos reféns, barbaridades escondidas sob o mantra da justiça social. Verdadeira bandidagem.
O MST, de início, aproveitou-se dessa brutalidade para expandir os seus domínios, especialmente no Pará. Imiscuiu-se com essa criminalidade alimentada pela miséria e estimulada pelo caos fundiário. Mordeu, porém, do próprio veneno: gerou internamente a beligerância.
Neste caldo de cultura que alimenta a violência rural, Zé Rainha projetou-se.
O passado condena. Fugido de Pedro Canário (ES), onde enfrentava a Justiça por antigo crime de assassinato, o carismático Zé Rainha foi útil ao MST no Pontal do Paranapanema. Brilhou na televisão. Até romper com o comando central do movimento, partindo para sua carreira solo. Prostituiu-se, acabou proscrito.
Os infames vos enganaram, bradou Demóstenes, recriminando os combalidos atenienses quando estes, equivocadamente, socorreram Plutarco nas guerras da antiga Grécia. Milhares de pessoas esperançosas, no Pontal do Paranapanema como alhures, seguiram o discurso fácil e fantasioso da terra prometida, como se entrassem na fila do passaporte para a felicidade.
Zé Rainha, além de corrupto, comandou a perniciosa fábrica de sem-terra montada País afora pelo MST e seus congêneres. Nela boias-frias e desempregados urbanos se misturam com ambulantes, domésticas, tarefeiros, prostitutas, pessoas de bem e oportunistas, todos interessados no lote dadivoso da reforma agrária. Basta montar um barraco na beira da estrada e recolher um pedágio mensal, espécie de taxa da ilusão. Até trombar com a dura realidade.
As utopias movem o mundo. As farsas, porém, desgraçam a História. Executar um processo de reforma agrária e criar novos agricultores exige planejamento, capacitação, idealismo. Nenhum desses elementos mora na cadeia onde dorme Zé Rainha.