A fronteira sempre me atraiu. No apenas uma atrao fsica, mas um tipo estranho de atrao espiritual. Nasci em plena ebulio de uma fronteira quando a sociedade brasileira avanou sobre a regio norte do pas. Minha vida caminhou junto com esta fronteira. Cresci neste processo.
Mas essa relao transcende a vida material. Filmes como Sombra e Escurido, Dana com Lobos,
The Proposition e Open Range; livros como Grande Serto Veredas, de Guimares Rosa, os primeiros volumes de O Tempo e Vento, de rico Verssimo,
Blood Meridian, de Cormac McCarthy; as teses de doutorado de Susana Hacht e Joo Santo Campari sempre me atraram e tocaram de forma especial. Passei momentos saborosssimos sorvendo textos e vdeos como esses. Todos tm em comum um olhar sobre a fronteira da humanidade em direo ao mundo, por assim dizer, desumanizado.
Desde que um tipo particular de macaco africano adquiriu humanidade, nossa espcie coloniza, na acepo ecolgica da palavra, continuamente, o planeta. um comportamento natural, faz quase parte da biologia do
homo sapiens expandir os limites de seu domnio sobre as outras espcies.
Vivemos dias incomuns. Fao talvez parte da primeira gerao de seres humanos que se vem diante da necessidade de parar uma fronteira, de mudar um comportamento talvez inerente prpria natureza humana. Todas as vezes em que esse processo salta aos meus olhos como se eu tomasse um soco no estmago.
A foto que ilustra esse
post foi tirada por mim pouco depois do meio dia de hoje, sete de setembro de 2011. uma ponte erguida sobre o rio Gurupi que separa o Par do Maranho. Atravessei essa mesma ponte onze anos atrs, no final da tarde de um domingo. O desmatamento na Amaznia experimentava um pico histrico.
Havia um cheiro forte de poeira, de fumaa dos fornos de carvo, de p de madeira das serrarias com ptios lotados de toras. Um nico bar, que usava energia eltrica do gerador a diesel de uma das serrarias, vendia cerveja quase gelada. Entrei e bebi algumas. Conversei com gerentes de fazendas prximas e funcionrios das serrarias. O local, um casebre de tbuas pintadas de verde com piso de cimento queimado, fervia.
O assunto do momento era um cadver roxo e inflado de um homem que havia sido morto numa briga de festa na noite anterior e que boiava alguns metros abaixo dessa ponte a da foto. A polcia havia sido avisada, mas ainda no havia aparecido. Ningum sabia o sobrenome do defunto e no havia parentes conhecidos para reclamar seus restos e ele estava l, boiando indiferente com os olhos fixos no lodo do fundo do rio.
Num determinado momento entraram no bar trs ou quatro homens sobressaltados e comeou um alvoroo. Os homens traziam notcia sobre uma briga que acabara de acontecer no prostbulo local. Segundo a histria deles, trs juquireiros haviam quebrado os isopores e derramado todo o gelo, deram panadas de faco em algumas das mulheres e quebraram o rdio de pilhas, ou seja, destruram o cabar.
O clima ficou tenso e, embora tivesse disposio para mais algumas cervejas, decidi tomar o meu rumo. Sempre fui medroso. Nunca mais voltei no lugar. At hoje.
Tudo estava como h onze anos. O casebre continua l. possvel v-lo, mal-e-mal, dando
zoom na foto. Exceto pela pintura azul beb das tbuas, continua exatamente igual h onze anos. Estava fechado, ento no pude entrar, nem tomar uma cerveja, nem conversar com as pessoas. Havia um silncio angustiante. Quase todas as portas estavam fechadas, no havia carros, nem movimento de caminhes. Trs homens estavam sentados numa sombra diante de mochilas provavelmente esperando um nibus ou coisa parecida. Manobrei o carro na frente do casebre e voltei para casa.
Quando decidi ir at l hoje fiquei empolgado com a expectativa de rever aquele lugar e relembrar essa histria, mas voltei de l com um n no gorgomilo. A fronteira parou.
De l at a minha casa so mais de cem quilmetros de estrada de terra. Foram quase duas horas ouvindo
Cowboy Junkies e ruminando aquela esquisitice de uma fronteira que no caminha. No que eu queira que ela ande at o fim. A angstia vem da evidncia de que o fim chegou e de que ns teremos que lidar com o comportamento inumano de no colonizar, de no ocupar novos nichos. Foi o sentimento de finitude, de aprisionamento e a necessidade evidente de nos desumanizarmos, de corrompermos nossa prpria natureza humana que me atou a boca do estmago.
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