Gerente geral do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (ICONE). Mestre em Direito Internacional pela UFSC, 2004.
Anistia. Dia da vergonha. Retrocesso da legislação ambiental. Vitória dos ruralistas e do poder econômico. Escalada do desmatamento. Dilapidação do patrimônio natural. Descumprimento de metas de clima e biodiversidade. Vexame na Rio+20. Flagrante desrespeito à ciência. Urgência do veto presidencial. Essas são algumas das expressões utilizadas pela grande maioria da mídia, por quase todas as ONGs, vários deputados e senadores e outras pessoas sobre a votação final do Código Florestal na Câmara.
Após quase uma década de discussões, em que todos os setores interessados puderam expor seus pontos de vista - ONGs, movimentos religiosos e sociais, academia, representantes de entidades científicas, produtores, políticos (inclusive de outros países) - a despeito de quem defenda o contrário, rotular o novo Código Florestal de catástrofe ambiental reflete a visão de quem não aceita concessões e queria vencer a guerra mantendo o código de 1965.
O problema dessa postura de ganhar ou perder é que ela não cabe numa discussão dessa magnitude.
Rever de forma democrática uma lei tão relevante para o país exige diálogo, construção de consensos sobre temas incrivelmente sensíveis como é a consolidação de atividades produtivas em certas Áreas de Preservação Permanente (APPs) e a importância de sua recomposição em outros casos.
A nova lei, que não pode tratar somente de conservação florestal sob pena de cair no erro histórico de não disciplinar e organizar o uso da terra é fruto de uma intensa negociação, em que cada grupo de interesses teve de fazer concessões. A leitura derrotista parte da premissa de que era preciso exigir as obrigações do código atual, ou seja, a recuperação integral de todas as APPs e a recomposição das áreas de Reserva Legal (RL) nas próprias fazendas, tirando áreas produtivas.
Curiosamente, a demanda por revisar o Código Florestal significava justamente alterar uma lei antiga, difícil de ser cumprida, que não ajudava o estado a controlar de forma eficaz o desmatamento ilegal e não trazia incentivo algum para quem conserva florestas. Exigir a recomposição de 100 milhões de hectares de RL e APPs, como prevê o código atual, é factível diante da realidade de nosso país?
A resposta para essa pergunta reflete, em grande parte, as bases do novo código. Afinal, se fosse para manter as regras atuais, a famigerada reforma não seria necessária. É crucial destacar que as duas obrigações centrais de conservação de vegetação nativa - APPs e RLs - continuam a existir. O que mudou foi a forma de regularizar propriedades que já estavam vivendo em não conformidade.
De agora em diante existem três situações: 1) quem já tem áreas com florestas para APP e RL deverá mantê-las, bem como quem adquirir novas áreas; 2) quem possui passivos terá alternativas para cumprir, e aqui se situa o enorme desafio da regularização ambiental de quase 90% das fazendas brasileiras; e 3) quem desmatou depois de julho de 2008 não terá alternativas senão cumprir as regras das APPs e Reserva Legal, sem exceções.
Produtores que desmataram APPs até julho de 2008 terão de recuperar no mínimo 15 metros ao longo dos rios de até 10 metros e essa recuperação não ultrapassará o limite da RL nas propriedades de até quatro módulos fiscais e da agricultura familiar. Além disso, para continuar usando a área, os produtores deverão adotar critérios de proteção do solo e da água que serão aprovados pelo poder Executivo. Isso significa que haverá recuperação de APPs, ponto mais sensível de toda a negociação do novo código.
É importante frisar que os 15 metros de recuperação de APPs ripárias é um limite mínimo, que poderá ser ampliado pelos estados por meio dos Planos de Regularização Ambiental. Caso o texto aprovado não adotasse uma recuperação mínima, poder-se-ia falar em consolidação total e anistia como sustentam certos argumentos.
Para a RL, que continua a mesma (80% com possibilidade de redução para 50% na Amazônia, 35% no Cerrado e 20% nas demais regiões), ao invés de ter de recompor na mesma propriedade ou compensar na mesma microbacia, o que é extremamente limitante, o produtor poderá optar por recompor na própria fazenda ou arrendar/comprar áreas de vegetação nativa relevantes para a biodiversidade no mesmo bioma. É fundamental destacar que as áreas que farão parte do mercado de compensação são as que vão além das obrigações de APP e RL, ou seja, que poderiam ser legalmente desmatadas.
O argumento de que a RL na Amazônia caiu de 80% para 50% é correto, mas ninguém fala que a regra do código vigente já permitia essa redução, como é o caso dos estados do Amazonas e do Pará.
Na prática, a aprovação dessas alternativas para cumprir a nova lei exige que os produtores não desmatem novas áreas. Como a grande maioria precisará se regularizar não é plausível enxergar uma retomada explosiva de desmatamentos como se alega. Caso o desmatamento seja ilegal, deverá ser coibido nos termos da nova lei, que reflete as mesmas obrigações do código de 1965, pois serão desmatamentos ocorridos depois de 2008.
Como base para a regularização, o estado deverá aprimorar o Programa Mais Ambiente, que será chamado de Cadastro Ambiental Rural (CAR). Partindo do princípio de que todas as propriedades serão cadastradas, com fotos de satélite de alta resolução compradas pelo Ministério do Meio Ambiente, o governo e a sociedade terão clareza sobre o quanto de APPs e RL o Brasil possui, e o quanto deverá ter nos próximos anos com base na regularização.
Isso implica, de um lado, papel do estado em gerir e monitorar desmatamento, o que é fundamental.
De outro, permitirá separar os produtores que se regularizaram, e, por isso, terão prestado um serviço ambiental, o que refuta a tese da anistia, daqueles que ainda estão em débito e deverão sofrer as penas da lei.
É intrigante ver que, em vez de pensar o CAR como ferramenta estratégica, vários argumentos contestaram a desobrigação de postar todas as informações na internet, o que seria uma exposição pública desnecessária e até ilegal. O importante é que os órgãos ambientais tenham as informações, que de forma agrupada serão repassadas para a sociedade.
Há inúmeros benefícios do texto, ao contrário de falácias e argumentos que pintam um cenário de caos ambiental à véspera da Rio+20. O Brasil possui mais de 60% de vegetação nativa e cerca de 250 milhões de hectares destas áreas estão nas fazendas brasileiras. Esse incalculável ativo ambiental não é vergonha para ninguém, e sim, uma vitória diante de um mundo devastado.
O Brasil ganha uma lei realista, que poderia ser aprimorada em certos pontos, mas que permitirá consolidar o desafio da conservação ambiental e da expansão sustentável da agricultura. A demanda pelo veto, lastreada no sentimento de derrota, mostra que tem gente que não aceita revisitar a lei velha e ineficaz, a fim de construir uma nova, moldada pela realidade brasileira, que incentive a regularização ambiental e reforce o combate ao desmatamento ilegal. Felizmente o bom senso prevaleceu, e entendo que será essa a visão da presidente Dilma.
Rodrigo C. A. Lima. Gerente geral do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (ICONE).
Receba nossos relatórios diários e gratuitos