Engenheiro agrônomo, formado pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo, com mestrado e doutorado pela mesma universidade. É pesquisador da Embrapa Pecuária Sudeste e especialista em nutrição animal com enfoque nos seguintes temas: exigência e eficiência na produção animal, qualidade de produtos animais e soluções tecnológicas para produção sustentável.
Foto: Scot Consultoria
O trabalho “Alimentos de origem animal: Um problema de sustentabilidade ou uma solução da desnutrição e da sustentabilidade? Perspectiva conta”, abre nossos olhos para a importância dos produtos de origem animal na busca por um mundo melhor. Os autores são do Feed the Future Innovation Lab, da Universidade da Florida, nos EUA. Seu maior mérito é mostrar como a adoção de uma visão mais ampla de sustentabilidade e o abandono de preconceitos sobre a produção animal são fundamentais para avançarmos para um mundo mais próspero e, ao mesmo tempo, menos desigual.
Um trecho que mostra bem o espírito do trabalho é: “A sustentabilidade do planeta tem que considerar populações com vulnerabilidade nutricional e o impacto que o baixo consumo de alimentos de origem animal (AOA) tem em suas vidas e seu futuro, uma perspectiva na maioria das vezes ausente ou sub-representadas nas análises científicas e discussões acaloradas do impacto da produção animal nas mudanças climáticas”
Abaixo, destacamos alguns pontos do trabalho, aos quais fazemos a seguir comentários, aproveitando para ampliar a discussão à luz do contexto brasileiro.
1) Percepções negativas da produção animal: Segundo os autores, elas decorreriam de três fatores: (i) superestimativa dos efeitos da produção animal ao ambiente, (ii) limitar a avaliação de dados à realidade de consumo acima das necessidades que ocorre em países de renda alta e média e (iii) de uma visão estreita de sustentabilidade, exageradamente focada na questão climática.
Comentários: No caso do item (i), os problemas vão desde as métricas usadas até falta de informações para incluir drenos de carbono (como das raízes das forrageiras). A questão levantada no item (ii) é um problema recorrente em que a produção intensiva em confinamento muitas vezes é tomada como representativa da produção de carne bovina no mundo. O item (iii) é o ponto mais ligado ao espírito do texto e será revisitado várias vezes.
2) AOA são fundamentais desde antes da infância começar: A subnutrição é responsável por quase metade da mortalidade infantil no mundo. Além disso, há os efeitos de longo prazo, como maior vulnerabilidade às doenças e sérios prejuízos cognitivos, com consequente insucesso na educação e reduzida capacidade na vida produtiva. Segundo a OMS, AOA são as melhores fontes disponíveis de nutrientes para crianças entre o período mais crítico, dos 6 e 23 meses de idade. Além de elevado teor proteico de alta qualidade e maior biodisponibilidade de vitamina D3, cálcio e ácidos graxos essenciais, são ricos exatamente nos nutrientes prevalentes nas deficiência de mulheres grávidas e crianças: ferro, iodo, zinco e as vitaminas A, B9 (ácido fólico) e B12. No caso da B12, os AOA são sua única fonte natural. Além de todas essas informações, os autores citam vários trabalhos mostrando o efeito positivo de AOA para crianças, incluindo grandes melhorias no desempenho escolar e em outras habilidades cognitivas.
Comentários: O consumo per capita de AOA do brasileiro é alto, mas temos, mesmo nas mais ricas metrópoles, condições de subnutrição da infância, que são ainda mais críticas em regiões carentes espalhadas por todo país. Apesar de, entre 1975 e 2006, termos reduzido de 37% para menos de 7% a desnutrição crônica de crianças com menos de 5 anos, no caso dos assistidos pelo “Bolsa Família” ainda temos mais de uma em cada 10 crianças com baixa estatura para a idade, um importante indicador de subnutrição. Enfim, melhorar a segurança alimentar, com melhor nutrição para nossas crianças é um fator de combate à desigualdade e formação de melhores cidadãos.
3) Sem AOA, nada de ODS: Os autores chamam a atenção como é importante contar com AOA para avançar nos dezessete Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU). As ODS formam uma agenda proposta a todos os países para, até 2030, termos um mundo melhor e duradouro, que é o que significa ser sustentável. Elas vão desde “Acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares” (a ODS 1) até “Fortalecer os meios de implementação e revitalizar a parceria global para o desenvolvimento sustentável” (a ODS 17), passando por segurança alimentar (alimento para todos), saúde, educação, saneamento, energia, trabalho, redução das desigualdades, segurança, ambiente e paz. Eles chamam a atenção que a produção animal representa, em média, 40% do PIB agrícola em países em desenvolvimento no mundo e que mais da metade dos pobres no mundo dependem da produção animal para subsistência, como receita financeira, seguro e alimento. Advogam, enfim, que a produção animal é indispensável se quisermos ser bem sucedidos nas ODS.
Comentários: No Brasil, a agropecuária representa cerca de 20% do PIB, mas somos grandes exportadores de AOA, especialmente no setor de carnes, mas com grande potencial na cadeia de lácteos e aquicultura. No caso de carne bovina, apesar de exportamos apenas 20% da produção, estamos sempre entre ser o primeiro ou segundo maior exportador mundial. Somos, portanto, país chave no cenário de melhorar a oferta de AOA em escala global. Uma enorme responsabilidade e uma imensa oportunidade.
4) Alimentos nobres em solos pobres: AOA são produzidos em 57% de áreas no mundo que não são adequadas ao uso agrícola e suprem 25% da proteína e 18% das calorias consumidas globalmente, fundamentais para a segurança alimentar mundial (dados referentes ao ano de 2016).
Comentários: Devemos estes expressivos e eloquentes números a um lugar especial que os ruminantes ocupam ecologicamente: eles são capazes de fazer capim se transformar em uma fonte de proteína nobre, rico em energia e principal fonte de vários nutrientes fundamentais para a saúde. Como as forrageiras (nativas ou cultivadas) são relativamente menos exigentes, elas conseguem se manter mesmo em locais impróprios para a agricultura. Assim, para muitas áreas marginais à exploração com agricultura, a produção de ruminantes surge como alternativa mais tecnicamente correta. No Brasil, temos o exemplo do Pantanal, onde por mais de 200 anos a pecuária é um esteio econômico importante, convivendo em boa harmonia com uma natureza exuberante. Há problemas históricos, como o caso emblemático do assoreamento do Rio Taquari, mas atualmente temos conhecimento técnico e ferramentas de monitoramento cada vez melhores para evitar a repetição desses erros.
5) Energia animal: Animais fornecem força de tração para cerca de metade dos produtores rurais do mundo. Além disso, a generalizada adoção da digestão anaeróbica dos dejetos da produção animal nos EUA e a resultante redução nas emissões de GEE por carvão e pelos próprios dejetos poderiam reduzir em 158 toneladas de CO2-equivalente e produzir 0,6% do consumo anual de eletricidade daquele país.
Comentários: No caso do Brasil, além de várias iniciativas de cogeração de energia com dejetos animais, algumas delas pagas com créditos de carbono das emissões evitadas de metano, deveríamos fazer uma contabilidade melhor da economia de energia pelo uso dos subprodutos do abate de animais. Quanto de energia teríamos que gastar se todo o couro natural fosse substituído pelo sintético?
6) Nada se perde: Dejetos animais são usados como fertilizantes em mais de 50% dos cultivos no mundo, com importante papel na manutenção dos teores de matéria orgânica no solo, fundamentais para a saúde do solo, bem como de sua regeneração quando degradado.
Comentários: No Brasil, já temos exemplos de grandes confinamentos de gado de corte estruturados para aproveitar o esterco nas áreas agrícolas, inclusive na produção dos volumosos e outros alimentos utilizados no confinamento, com todas as vantagens em eficiência biológica e energética que esse “loop” proporciona.
7) Tudo se aproveita: Milhões de toneladas de subprodutos agroindustriais não passíveis de consumo por humanos são usados como alimento animal, ao mesmo tempo reduzindo a poluição relacionada ao descarte e aumentando a quantidade de alimentos para a humanidade. Dados recentes da FAO mostram que apenas 14% do alimento usado na produção animal seria de alimentos também comestíveis por seres humanos. Esse número é menor ainda no caso de países em desenvolvimento.
Comentários: Essa característica, especialmente pronunciada em ruminantes, soma-se a já comentada característica de ocupação de áreas marginais ao cultivo agrícola, colocando a produção de AOA como parte importante do dilema produção de alimento e ambiente, mas com força do lado da solução.
8) Inclusive para equidade: Atingir a ODS para equidade de gênero sem a produção animal será difícil, uma vez que aproximadamente metade dos produtores rurais no mundo são mulheres.
Comentários: A participação feminina no Brasil na agropecuária é crescente. Pesquisas não só mostram o aumento de propriedades rurais geridas por mulheres, mas aumento da participação desde o trabalhado no campo até nas bancadas dos laboratórios de pesquisa. Há, também, um aumento das mulheres em posições de comando em empresas públicas e privadas. Melhor exemplo disso, foi ter tido nos últimos anos, inclusive atualmente, competentes ministras da agricultura. Outro bom exemplo que damos ao mundo e que, certamente, ajuda a explicar sermos um setor fonte de continuadas boas notícias.
9) A parte do leão nas emissões: A intensificação sustentável da produção animal contribui muito para o atingimento das metas dos ODS. Das estratégias dentro do setor da agricultura, aquelas com maior potencial de mitigação de GEE são as práticas sustentáveis de produção animal. Os autores enfatizam a necessidade de maiores investimentos em pesquisa e desenvolvimento, particularmente na produção de ruminantes.
Comentários: No caso do Brasil, as potencialidades de redução de emissões na agropecuária são gigantes e parte dela já se tornou realidade. Em 2009, o Brasil propôs ousadas metas de redução de emissão de GEE em Copenhaguem (COP-15), anunciando em 2018 que, com tecnologias fomentadas pelo Plano ABC (agricultura de baixa emissão de carbono), conseguiu mitigar o equivalente a 73% da meta voluntária de 133,9 milhões de toneladas de CO2 equivalente. A Integração Lavoura-Pecuária-Floresta foi responsável por 27% dessa redução (36,4 milhões). A pecuária está no cerne do sucesso, já que um ponto chave no sucesso da integração é, exatamente, o aumento de carbono pelas raízes das nossas forrageiras tropicais.
10) A vez do filé para os emergentes: Com o aumento da urbanização, nível educacional e renda nos países de baixo e média renda, a demanda por AOA tem aumentado e deve continuar aumentando. A FAO estima uma demanda global por produtos de origem animal 70% maior até 2050, a maior parte do aumento ocorrendo em países emergentes.
Comentários: É legítima a busca por soluções para problemas globais com o esforço de todos, mas é, no mínimo, injusto cobrar redução do consumo de AOA exatamente quando há maior acesso e poder de compra por populações historicamente privadas deles. A injustiça fica mais evidente ainda quando consideramos que, mesmo o Brasil tendo um dos maiores rebanho do mundo, a emissão de seus animais represente menos de 1% das emissões totais de GEE. Aqui compensa reproduzir o que é segurança alimentar, como definido pela FAO: “Segurança alimentar existe quando todas as pessoas, a qualquer tempo, tem acesso físico e econômico para alimentos suficientes, seguros e nutritivos que atendam suas exigências dietéticas diárias e preferências alimentares para uma vida ativa e saudável”, destacando que “preferência” faz parte.
O trabalho aprofunda as maneiras de se produzir com menor impacto ambiental e aponta, também, como se deve ter cuidado com outras questões, como às ligadas à sanidade (zoonoses, resistência a antimicrobianos) e da nutrição humana saudável.
Todos esses pontos estão sendo pesquisados no Brasil e já temos produção animal ocorrendo de maneira exemplar e cada vez mais gente seguindo esses bons exemplos. Temos, ainda, linhas de pesquisa em desenvolvimento, como a inteligência artificial, digitalização da agricultura, genômica, edição gênica, nanotecnologia e tantas outras, que poderão trazer grandes saltos de qualidade. Em curto e médio prazo, teremos que continuar intensificando com inteligência, de forma a causar o mínimo de danos ao ambiente, reforçar nossa vigilância sanitária e aprender a tirar melhor proveito de nossas vantagens competitivas. No caso deste último, uma boa oportunidade é promover nossa carne lembrando ao consumidor que ela é majoritariamente produzida em pastagem, com maior bem estar aos animais, naturalmente mais ricas em vitaminas e com baixo teor de gordura. A carne mais magra, de um boi mais feliz, ajuda ainda mais a fazer um mundo melhor.
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