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Vaca Papel


Sexta-feira, 16 de outubro de 2020 - 10h00

Advogado (OAB/MS 16.518, OAB/SC 57.644) e Professor em Direito Agrário, Ambiental e Imobiliário. Comentarista de Direito Agrário para o Canal Rural. Organizador e coautor de livros em direito agrário, ambiental e aplicado ao agronegócio. É membro fundador da União Brasileira da Advocacia Ambiental (UBAA) e membro das comissões de Direito Ambiental e Direito Agrário da OAB/SC. Foi Presidente da Comissão de Assuntos Agrários e Agronegócio da OAB/MS e membro da Comissão do Meio Ambiente da OAB/MS entre 2013/2015. Doutorando em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Socioambiental pela Universidade do Estado de Santa Catarina, Mestre em Desenvolvimento Local (2019) e Graduado em Direito (2008) pela Universidade Católica Dom Bosco.


Foto: Freepik


É muito comum, em algumas situações de negociação de compra e venda de propriedades rurais, empréstimos etc., notar a utilização de meios ‘transversos’ para indexar com o fim de atualizar valores de dívidas, dos tradicionais indexadores monetários (IGP-M) para arroba do gado, simulando contratos como os de “parceria pecuária”.

Nessa suposta “parceria pecuária”, que esconde uma negociação completamente diversa, o comprador da propriedade rural simula um “parceiro outorgado”, aquele quem recebe alguma coisa em parceria e o vendedor da propriedade rural simula um “parceiro outorgante”, aquele que entrega alguma coisa em parceria.

A negociação é feita como se fosse uma entrega de gado – que já estava na fazenda – para abatimento de parte da dívida da compra e venda da própria fazenda entre eles, por meio da engorda, cria e recria de animais, partilhando os bezerros nascidos desse rebanho como forma de renda desta parceria, na verdade o pagamento pela compra da propriedade rural.

E qual o problema?

Por vezes, esses contratos são tão descuidados e mal redigidos que se tornam o próprio problema ao invés da solução, já que estão baseados em “negociações de gaveta” ou verbais.

Cito o exemplo de um contrato que descrevia que o outorgante (vendedor) entrega “436 vacas aneloradas”, ou seja, gado cruzado, com idade de 3 a 8 anos e com mais uma cláusula contratual, que define o prazo dessa parceria em período de 5 anos, de maneira que, ao final dessa relação as 436 cabeças deveriam ser devolvidas.

Nota-se que não apenas o contrato não especifica pesos e idades destas 436 cabeças, como também parte do gado acaba sendo abatido pelo próprio ciclo da pecuária ou o “giro do boi” e a gestão feita na propriedade, o que é muito comum.

E nessa situação, sem o cuidado de anexar documentos complementares para comprovar a existência do rebanho (ata notarial, DAP etc.), torna-se impossível saber EXATAMENTE quais as características das 436 cabeças a serem devolvidas.

Mas esse não é o problema principal.

Como sabemos, mais vale um mal acordo do que uma demorada ação judicial de rescisão de contrato de parceria com depósito de valores em juízo, onde seria feito um cálculo “médio” de peso de vacas “aneloradas” para pagamento dessa rescisão, já que, como conhecemos da pecuária, mesmo com certa variação de idade, determinadas características do gado não permitem maiores ganhos de peso e por isso, a solução demandaria dessa liquidação contratual, ou seja, atribuir um valor que pode não agradar nem ao outorgante e nem ao outorgado.

O risco maior para esse caso é a simulação contratual, pois sem comprovação de entrega do rebanho, há um risco de que o judiciário considere nulo este contrato, por não acreditar na existência do gado, situação já decidida nos tribunais por diversas vezes, chamando esses contratos de “vaca papel”.

Segundo o decreto regulamentar do Estatuto da Terra (Decreto 59566/1966, art. 4o.), a parceria pecuária caracteriza-se pela entrega de animais para cria, recria, invernagem, engorda ou extração de matérias primas de origem animal, mediante partilha de riscos do caso fortuito e da força maior do empreendimento rural, e dos frutos, produtos ou lucros havidos nas proporções que estipularem, observados os limites percentuais da lei (artigo 96, VI do Estatuto da Terra).

O contrato vaca-papel simula um contrato agrário de parceria pecuária, em que, na realidade, revela uma prática que já foi muito comum nestas negociações, que é esconder uma relação de agiotagem ou de mútuo oneroso de dinheiro, com a incidência de juros e acréscimos proibidos por lei, mas “maquiados” pela parceria pecuária, o chamado mútuo feneratício ou frutífero, que afronta a limitação dos juros em 12% ao ano, nos termos do Decreto-lei no. 22.626/33.

Então, a característica do contrato vaca-papel é a inexistência da vaca e a existência do papel, porque sua transferência só aconteceu no papel ou não foi comprovada por quaisquer meios de provas já comentados além de possíveis testemunhas, transformando parceiros outorgante e outorgado em mutuante e mutuário, por simulação relativa em torno de empréstimo a juros e acréscimos proibidos.

O problema com o mútuo feneratício é que esse impõe a limitação dos juros em 12% ao ano e a exclusão dos encargos relativos à devolução do gado e substituição da era (idade) pela correção monetária e juros de mora.

Vejam a seguinte história contada pelo professor Licínio Carpineli que diz:

“um pecuarista, proprietário rural, encontra-se atravessando dificuldades financeiras. Necessita de tempo para trabalhar e produzir a fim de restaurar sua administração e resgatar seus débitos e, da mesma forma, pode necessitar de algum capital para giro ou para suas necessidades mais emergentes. Surge um interessado no imóvel. Convencionam um contrato simulado de parceria pecuária nos quais nenhuma rês é entregue ao proprietário devedor. [...] Os débitos são muito menores que os valores compostos objeto do monte convencionado. Mas tudo é aceito pelo parceiro/devedor [...] É cobrado, porque não teve como honrar os contratos de parceria, e estando o imóvel, que é a pretensão primordial do simulador principal, situado como garantia legal, propicia inclusive a transferência de posse [...] situações que compõem juros impossíveis de se quitar”.

Cito também o professor Washington de Barros Monteiro, que diz que:

"pode ser objeto desse contrato o gado grosso e miúdo; mas é o gado vacum, sobretudo, que de modo mais frequente propicia sua realização [...] o parceiro-proprietário fornece os animais, que continuam de sua propriedade; o parceiro-tratador entra com o trabalho e com as despesas de custeio e tratamento, se outra coisa não se estipular."

Enfim, apenas o que pode salvar esse contrato de nulidade são os pressupostos de validade desses contratos, ou seja: 1) entrega do gado pelo parceiro-proprietário, 2) a criação pelo parceiro-criador e a 3) divisão dos lucros havidos.

E nos tribunais também não há o que se discutir, pois o assunto já tem sido julgado pelo Superior Tribunal de Justiça desde o ano 2000 (REsp 196.319-MS), quando, dentre outros casos, na gloriosa cidade de Aquidauana/MS, se iniciou um destes casos onde um contrato simulado de parceria pecuária foi utilizado para "esquentar o dinheiro" (REsp 595.766/MS), como também nos mais diversos tribunais estaduais já se decidiu no mesmo sentido.

Por fim, para que a vaca ou o papel não vão para o brejo, uma gestão mais profissional destes documentos com conhecimento da legislação agrária é fundamental.


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