Alcides Torres é Engenheiro agrônomo, formado pela Escola Superior de Agricultura "Luiz de Queiroz" - ESALQ, da Universidade de São Paulo, é diretor-fundador da Scot Consultoria. É analista e consultor de mercado, com atuação nas áreas de pecuária de corte, leite, grãos e insumos agropecuários. É palestrante, facilitador e moderador de eventos conectados ao agronegócio. Membro de Conselho Consultivo de empresas do setor e coordenador das ações gerais da Scot Consultoria.
Julia Zenatti é médica veterinária e Analista de mercado da Scot Consultoria.
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Artigo originalmente publicado no Broadcast Agro, da Agência Estado, em 18/7/2022.
O relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), “O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo” (SOFI, 2022) divulgado em 6 de julho, informou que entre 2020 e 2021, mais de 4 milhões de pessoas entraram para o mapa da fome na América Latina e no Caribe.
O documento apontou que, em 2021, a fome global afetou 828 milhões de pessoas, um aumento de cerca de 150 milhões desde o início da pandemia de covid-19.
Esses números são mais preocupantes quando se considera o desperdício alimentar. Segundo um estudo publicado no Índice de Desperdício de Alimentos 2021, do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, cada brasileiro joga no lixo cerca de 60kg de alimento todos os anos. Além disso, segundo a FAO (2021), cerca de 14% dos alimentos produzidos mundialmente são perdidos antes mesmo de chegarem aos mercados varejistas.
É um assunto delicado, uma vez que o Brasil é um dos maiores fornecedores de alimento para o mundo, mas, em contrapartida, estima-se que temos mais de metade da população brasileira em um cenário de vulnerabilidade alimentar.
A perda e o desperdício de alimentos são fatores que potencializam a insegurança alimentar e, consequentemente, a fome no mundo. Diante do cenário que temos enfrentado, com o crescimento da população mundial, uma possível recessão global, sucedida de uma crise sanitária de mesma escala e dos impactos causados pelo conflito russo-ucraniano, levantam-se questionamentos sobre a capacidade da cadeia produtiva suprir a demanda por alimentos.
Em 2015, a ONU propôs para os países membros metas para um desenvolvimento sustentável até 2030. A proposta fomenta objetivos como: acesso a alimentos seguros; redução em 50% do desperdício de alimentos per capita; e redução das perdas de alimentos ao longo das cadeias de produção e abastecimento.
No entanto, o último relatório da ONU informa que a prevalência de insegurança alimentar grave, no Brasil, aumentou de 3,9 milhões de pessoas entre 2014 e 2016 para 15,4 milhões entre 2019 e 2021. As projeções levam a um cenário de que cerca de 670 milhões de pessoas ainda enfrentarão fome em 2030 no mundo.
E, apesar das últimas quedas reportadas em relação aos preços mundiais dos alimentos, esses ainda permanecem em níveis próximos aos recordes alcançados em março desse ano.
Levando em consideração esse contexto de crescimento da insegurança alimentar, acompanhado de uma alta nos custos de produção dos alimentos, combater o desperdício de alimentos deixa de ser um capricho e se torna uma ferramenta importante para potencializar a oferta de alimentos em longo prazo de maneira sustentável.
Diferenciar desperdício de alimentos de perda de alimentos é importante. A perda se refere à diminuição da disponibilidade de alimentos nas fases iniciais de abastecimento: produção, colheita, armazenagem e transporte, enquanto o desperdício começa a partir do momento em que o alimento está disponível para comercialização e consumo, ele reflete as perdas em consequência do descarte de alimentos que ainda têm valor nutritivo.
Dados da FAO apontam que as perdas de alimentos na produção equivalem a 14% nos países em desenvolvimento e 10% em países desenvolvidos. Enquanto as taxas de desperdício correspondem a 7% e 28%, respectivamente.
As perdas estão presentes em toda a cadeia do processo produtivo, desde o planejamento do uso da terra para o plantio e as técnicas de manejo empregadas. A falta de conhecimento técnico para o uso e manejo adequado do solo resulta em menor produtividade e baixo rendimento.
Ainda no campo, a falta de capacitação da mão de obra resulta em grandes perdas, que são reflexo do manejo inadequado no momento da colheita e do uso inadequado de produtos e insumos, gerando desperdícios e prejudicando o bom desempenho do plantio.
No pós-colheita, as preocupações estão associadas às etapas de armazenamento, embalagem e transporte.
Durante o armazenamento, a temperatura e umidade devem estar apropriadas evitando a proliferação de microrganismos e a deterioração dos alimentos. Além disso, a armazenagem simultânea de produtos pode alterar a qualidade dos alimentos e o uso de embalagens inapropriadas resulta em danos e perdas.
Em relação ao transporte ainda temos muitos entraves, desde a falta de logística até problemas estruturais como estradas mal pavimentadas e meios de transporte rudimentares, sem refrigeração ou com superlotação de carga.
Segundo estudo realizado pela Associação Brasileira de Supermercados (ABRAS), o setor varejista registrou 1,79% de perdas sobre o faturamento bruto em 2020, o que representa um total estimado de R$7,6 bilhões.
As maiores perdas nesse elo da cadeia estão relacionadas às embalagens e manuseio dos produtos. Produtos expostos, sem passarem por um processo adequado de embalagem, sofrem mais alterações e são mais facilmente descartados do que produtos bem embalados.
Outro ponto de atenção é quanto ao prazo de validade dos alimentos. Uma gestão inadequada do estoque ou da identificação nas embalagens pode levar a um grande prejuízo, uma vez que esses produtos serão inutilizados e descartados.
Pensando nessa fatia do problema, uma das ações governamentais que poderia beneficiar a causa seria explorar a legislação para que produtos vencidos, porém que ainda apresentem boas condições de consumo, sejam liberados para o aproveitamento humano.
Já existem algumas ações que visam amenizar esses impactos causados pelo desperdício, com o objetivo de combater a fome no Brasil, como os bancos de alimentos. Esses bancos recebem doações de alimentos que apresentam condições seguras de consumo e reaproveitam esses produtos, que seriam condenados ao descarte. O aproveitamento é feito através da distribuição de cestas básicas e refeições prontas.
Apesar da existência dessas ações alternativas, o consumidor deve ter atenção ao desempenhar seu papel no momento da compra e consumo conscientes, ações fundamentais para a redução do desperdício e da geração de resíduos.
Quanto aos hábitos do consumidor brasileiro, um estudo recente da Universidade Federal de São Carlos revelou que uma das causas do desperdício de alimentos é o fato das pessoas buscarem um alimento sempre em perfeito estado, esteticamente agradável.
Os brasileiros possuem uma cultura alimentar extremamente visual e que tende a excessos. Quem já não ouviu, durante o preparo de uma refeição para um grupo de pessoas, a famosa frase: “é melhor sobrar do que faltar”.
É necessário planejamento no momento da compra e preparo dos alimentos, evitando sobras. As pessoas também devem ser conscientizadas e sensibilizadas de que os processos da cadeia de produção, que levam o alimento até o varejo, pode afetar a aparência física dos alimentos, mas que esses mantêm seus valores nutritivos. Sem contar as diferenças naturais, uma vez que estamos falando de alimentos, algo vivo, portanto, sempre haverá algum tipo de alteração como, por exemplo, cores, texturas, manchas etc.
Essas atitudes impactam na sustentabilidade dos sistemas alimentares, trazendo prejuízos ao meio ambiente, reduzindo a disponibilidade de alimentos, gerando menores recursos para os produtores e, consequentemente, aumentando os preços para os consumidores.
A guerra russo-ucraniana envolveu dois dos maiores produtores globais de cereais, oleaginosas e fertilizantes. Este conflito tem interrompido as cadeias de suprimentos internacionais e contribuindo para a elevação dos preços de grãos e insumos, tendo implicações de importância global na segurança alimentar.
As simulações contidas no SOFI sugerem que, no cenário de choque moderado, o número global de pessoas subalimentadas em 2022 aumentaria em 7,6 milhões de pessoas, enquanto esse aumento seria de 13,1 milhões de pessoas sob a configuração de choque mais severa.
Olhando para o futuro, as projeções são de que, até 2030, cerca de 8% da população mundial ainda enfrentará a fome. Mesmo se houver uma recuperação econômica global nos próximos anos e que as condições de fornecimento de alimentos se reestabeleçam de forma favorável, é irresponsável continuar desperdiçando alimentos nos níveis atuais. A mudança é urgente.
Segundo a FAO, cerca de um terço dos alimentos produzidos para consumo humano são perdidos ou desperdiçados. Nesse contexto, a economia circular é mais uma ferramenta para otimizar os recursos, proporcionando uma redução do desperdício e uma linha de produção mais sustentável.
Essa ferramenta usa como base os 3R’s (Reduzir, Reciclar e Reutilizar) e aplica essas ações em toda a cadeia de produtos. O objetivo é fugir de um modelo de produção linear padrão para um modelo circular, propondo um olhar mais ecológico, onde produtos que antes seriam considerados resíduos sejam vistos como um potencial novo produto.
Outra ferramenta efetiva, que vem sendo amplamente aplicada pelas empresas, é a indústria 4.0. Ela é definida como uma integração de diferentes tecnologias digitais aplicadas aos processos de produção, com objetivo de aumentar a eficiência.
Tem se fortalecido o conceito Economia Circular 4.0, uma vez que essas ferramentas se complementam: a Indústria 4.0 permite o desenvolvimento de novos modelos de negócios circulares, enquanto a economia circular promove sentido ao desenvolvimento dessas tecnologias.
A conexão entre diferentes elos da cadeia resulta em maior produtividade e menores perdas durante os processos produtivos.
O Brasil tem um compromisso com a segurança alimentar e nutricional em nível mundial, englobando o trabalho de redução de perdas e desperdício de alimentos ao longo da cadeia de produção e consumo.
O desenvolvimento de políticas de fomento a iniciativas com esses objetivos pode contribuir com a popularização da economia circular e com a inovação tecnológica, fortalecendo o desenvolvimento econômico do Brasil e, consequentemente, fortalecendo o movimento contra a insegurança alimentar.
Para que isso ocorra de fato, devemos trabalhar em todos os elos da cadeia.
Desde o campo, onde o produtor deve ter o combo: conhecimento técnico, acesso a equipamento adequado e infraestrutura eficiente, para atender a demanda e evitar perdas. O serviço público deve contribuir com melhor qualidade e acesso às vias de escoamento e centros de abastecimento, por exemplo, investindo em melhorias das estradas, visto que hoje o sistema rodoviário é o principal meio de transporte interno dos produtos alimentícios brasileiros. Depois, com a chegada do alimento até o consumidor, cabe a ele ser consciente dos desperdícios diários e controlar a produção de resíduos dentro da sua residência.
A sensibilização pública é essencial, cabe ainda aos órgãos públicos e empresas privadas promoverem iniciativas de conscientização nas casas das famílias brasileiras, demonstrando os prejuízos financeiros e ambientais causados pelo desperdício, trabalhando em uma mudança profunda de mentalidade, revertendo essa cultura “estética” dos alimentos.
Todas essas ações conjuntas em prol de um mesmo objetivo – reduzir as perdas e desperdícios de alimentos – são passos fundamentais para tornar os modelos de consumo e produção efetivamente sustentáveis e impactam diretamente nas vidas de milhões de pessoas.
A conscientização sobre o impacto e os papéis a serem desempenhados por cada parte são ações fundamentais na melhoria do cenário atual e na luta contra a insegurança alimentar.
Referências Bibliográficas
Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO)
Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas para a Infância (Unicef)
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA)
Organização das Nações Unidas (ONU)
Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA)
Centro de Pesquisa em Ciência, Tecnologia e Sociedade (IPEA)
Associação Brasileira de Nutrição (ASBRAN)
Sustentabilidade em Foco – Escola de Engenharia de Lorena (site USP)
Aula: Sustentabilidade no Agro, Profa. Ma. Leticia Franco Martinez (MBA Agronegócio- USP)
Ambiental Mercantil
CNN Brasil
Scot Consultoria
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