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Marco temporal em conflito entre os três poderes


Segunda-feira, 23 de outubro de 2023 - 16h30

Advogado (OAB/MS 16.518, OAB/SC 57.644) e Professor em Direito Agrário, Ambiental e Imobiliário. Comentarista de Direito Agrário para o Canal Rural. Organizador e coautor de livros em direito agrário, ambiental e aplicado ao agronegócio. É membro fundador da União Brasileira da Advocacia Ambiental (UBAA) e membro das comissões de Direito Ambiental e Direito Agrário da OAB/SC. Foi Presidente da Comissão de Assuntos Agrários e Agronegócio da OAB/MS e membro da Comissão do Meio Ambiente da OAB/MS entre 2013/2015. Doutorando em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Socioambiental pela Universidade do Estado de Santa Catarina, Mestre em Desenvolvimento Local (2019) e Graduado em Direito (2008) pela Universidade Católica Dom Bosco.



O chamado marco temporal, seria o critério para demarcação das terras indígenas chamadas pela legislação de tradicionalmente ocupadas, ou seja, tradicionalidade e ocupação, que se traduzem, por si só, nos requisitos do que prescreve o artigo 231, da Constituição Federal.

Este processo de demarcação surgiu após 1988, em 1996, com o Decreto Federal nº 1.775, em seus singelos 11 artigos orientando que as “terras tradicionalmente ocupadas” pelos indígenas seriam demarcadas por iniciativa e sob a orientação do órgão federal de assistência ao indígena, com base em trabalhos desenvolvidos por antropólogo de qualificação reconhecida, que deve elaborar estudo antropológico de identificação (artigo 2º).

Dezenove anos depois da Constituição Federal, em meio a judicialização desta situação, surge a ideia de regulamentar o que seriam “terras tradicionalmente ocupadas em caráter permanente”, por meio do Projeto de Lei nº 490/2007, que tramitou mais 16 (dezesseis) anos até sua votação no Congresso que ocorreu na Câmara dos Deputados no dia 30 (trinta) de maio deste ano, resultando em sua aprovação e encaminhamento ao Senado.

No Senado, se tornou o PL 2903/2023, aprovado na CCJ e quase que totalmente vetado pelo Presidente da República na sexta-feira, dia 20 de outubro, já que suprimiu todas as menções às datas de 05/10/1988 para demarcações de terras indígenas, como prevê a Constituição Federal.

Além do mais, o presidente removeu o artigo 11, que previa indenizações e, portanto, bloqueou as discussões votadas pela maioria dos parlamentares de ambas as casas do Congresso, que agora deverá decidir pela derrubada do veto Presidencial.

Retomando o contexto histórico deste impasse, entre 1998 e 2005 eram discutidas as Portarias 820/1998 e 534/2005 do Ministério da Justiça, sobre a demarcação de terras indígenas tradicionalmente ocupadas Raposo Serra do Sol em Roraima, julgado em 2009, pelo Supremo Tribunal Federal, dando interpretação ao artigo 231 da Constituição Federal, no sentido de que são demarcadas apenas as terras indígenas em que povos indígenas ocupavam ou disputavam até 5/10/1988, promulgação da Constituição, recentemente reconsiderado pelo próprio STF em nova composição.

O voto daquela época partia da premissa do fato indígena ou do “esbulho renitente”, em outras palavras, o efetivo conflito possessório, iniciado no passado e persistente até o marco demarcatório temporal de 05/10/1988, oposto ao Indigenato.

Já o novo entendimento, cuja novidade não se explica juridicamente, considera a inconstitucionalidade do marco temporal, afrontando completamente o entendimento anterior e vários dos ministros ainda estenderam a questão ao definir indenização aos proprietários de terras demarcadas.

A tese do Ministro Alexandre de Moraes, por exemplo, entende que deve ser feito um pagamento em dinheiro ou em títulos da dívida agrária, previamente à entrega da posse das áreas, pago pela União, aplicável a demarcações atuais e pretéritas, tanto em relação à terra nua, quanto às benfeitorias necessárias e úteis realizadas, oriundas de ocupação de boa-fé, um assunto que comentamos em edição passada.

Os ocupantes de boa-fé seriam os compradores de terras que somente depois souberam que eram indígenas, que terão reconhecidos seus títulos de propriedades como legítimos, para fins de indenização pelo valor da terra nua e garantia do direito de retenção até o depósito do valor do incontroverso.

Já o Ministro Zanin, entendeu que as indenizações seriam para casos a partir da data do julgamento em não casos pretéritos ao julgamento, sendo que o pagamento deveria ser realizado por meio de títulos da dívida agrária depois da entrega da posse da propriedade aos indígenas, pleiteado em processo autônomo.

E em outro voto, o Ministro Luis Barroso entendeu que as indenizações deveriam ser pagas para casos de demarcações pretéritas e a partir do julgamento, por meio de dinheiro, pleiteado em processo autônomo, após demarcação e entrega da posse das terras demarcadas às comunidades indígenas.

E assim, a questão ficou decidida por maioria de votos no sentido de que cabe ao particular o direito à justa e prévia indenização das benfeitorias necessárias e úteis, pela União; e, quando inviável o reassentamento dos particulares, caberá a eles indenização com direito de regresso em face do ente federativo que titulou a área, recebendo pela terra nua, em dinheiro ou em títulos da dívida agrária, em autos apartados do procedimento de demarcação, com pagamento imediato da parte incontroversa, garantido o direito de retenção até o pagamento do valor incontroverso.

Porém, o STF considerou que não cabe indenização em casos já pacificados, decorrentes de terras indígenas já reconhecidas e declaradas em procedimento demarcatório, ressalvados os casos judicializados e em andamento, em outras palavras, não existe indenização para ocupantes de terras indígenas com Portaria Declaratória.

Portanto, as indenizações poderão ser concedidas em duas modalidades, a prioridade que é o reassentamento, que se não for possível, será substituído pela indenização do valor da terra nua em dinheiro ou através de títulos da dívida pública, com a concordância do proprietário.

Faltaria ainda definir como será feita a avaliação do valor das indenizações, um assunto ainda sem maiores detalhes, como também deverá ser definida a modulação dos efeitos da decisão e as formas de indenização.

E por fim, vale destacar que há uma diferença entre identificação, delimitação, demarcação e homologação de terras indígenas. Todas são etapas do processo de demarcação de terras indígenas tradicionalmente ocupadas em caráter permanente, sendo que, apenas a “homologação” seria o ato final, do Presidente da República.

Identificação e delimitação são as primeiras etapas, quando o grupo de trabalho nomeado pela Funai, coordenado por um “antropólogo de qualificação reconhecida”, realiza estudos de natureza etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário. Uma etapa provisória.

A demarcação acontece, quando a Funai aprova o relatório circunstanciado, encaminha ao Ministério da Justiça (Dec 1.775/1996) ou Ministro dos Povos Indígenas (Dec 13.348/2023), que deverá publicar a portaria demarcatória, indicando a área em discussão. Outra etapa provisória.

Sendo assim, os processos administrativos de demarcação de terras indígenas apenas se encerram após três principais atos administrativos: 1) a assinatura de portaria declaratória pelo Ministério da Justiça; 2) o decreto de homologação do presidente da República e; 3) a transferência do imóvel em matrícula, do antigo proprietário para o patrimônio da União, o que normalmente é feito pela Funai em posse dos documentos anteriores.

A perda da propriedade somente ocorre após a homologação pelo Presidente da República e transferência da matrícula para o patrimônio da União, pela Funai, dando autonomia para que o Governo ingresse com as medidas judiciais cabíveis para imissão de posse.

Lembrando que a Instrução Normativa nº 30/2023 da Funai, somada à reconsideração do marco temporal pelo STF e veto do Presidente da República, produzirão gravíssimos efeitos ao planejamento territorial e à segurança jurídica, já que serão provisoriamente identificadas terras indígenas, inseridas nos sistemas cadastrais fundiários, não emitindo a Declaração de Reconhecimento de Limites, bloqueando transações imobiliárias, verificações para arrendamentos e parcerias, bloqueio de crédito, sobreposições do Cadastro Ambiental Rural e outras consequências.


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