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A lei do marco temporal de demarcação de terras indígenas tradicionalmente ocupadas


Segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024 - 18h00

Advogado (OAB/MS 16.518, OAB/SC 57.644) e Professor em Direito Agrário, Ambiental e Imobiliário. Comentarista de Direito Agrário para o Canal Rural. Organizador e coautor de livros em direito agrário, ambiental e aplicado ao agronegócio. É membro fundador da União Brasileira da Advocacia Ambiental (UBAA) e membro das comissões de Direito Ambiental e Direito Agrário da OAB/SC. Foi Presidente da Comissão de Assuntos Agrários e Agronegócio da OAB/MS e membro da Comissão do Meio Ambiente da OAB/MS entre 2013/2015. Doutorando em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Socioambiental pela Universidade do Estado de Santa Catarina, Mestre em Desenvolvimento Local (2019) e Graduado em Direito (2008) pela Universidade Católica Dom Bosco.



Em 20 de outubro de 2023 foi sancionada e colocada imediatamente em vigência, a Lei Federal nº 14.701 que trata do famoso marco temporal de demarcação de terras indígenas, servindo como regulamentação do artigo 231 da Constituição Federal.

Segundo a técnica jurídica, a constituinte é regulamentada por leis, geralmente na sequência por decretos e assim sucessivamente. 

Para maiores esclarecimentos, a nova lei do marco temporal regulamentou o artigo 231 da Constituição Federal, enquanto o Decreto Federal nº 1.775/1996, responsável pelo processo administrativo de demarcação de terras indígenas, também regulamentou uma lei federal, no caso, o Estatuto do Índio (Lei Federal nº 6.001/1973), especificamente pelo artigo 19.

Art. 19. As terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio, serão administrativamente demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em decreto do Poder Executivo.

A nova legislação ao mesmo tempo em que solucionou uma grande quantidade de impasses e situações controvertidas da antiga legislação que vem sendo interpretada pelos tribunais, também omitiu e confrontou situações com o ainda vigente Decreto Federal nº 1.775/1996.

A provocação da nova legislação surgiu com a insegurança jurídica efetivamente causada pelo Supremo Tribunal Federal, ao modificar o seu próprio entendimento sobre o assunto, que já estava consolidado pelo caso Raposo Serra do Sol, onde partia da premissa do fato indígena ou do “esbulho renitente”, em outras palavras, o efetivo conflito possessório, iniciado no passado e persistente até o marco demarcatório temporal de 05/10/1988, data considerada para fins de demarcações de terras indígenas.

O novo entendimento da Suprema Corte, em composição diferente do caso anterior (Raposo Serra do Sol, PET3888), por sua vez, sem um respaldo jurídico sólido, entendeu pela inconstitucionalidade do marco temporal, abrindo margem para uma incalculável quantidade de possibilidades de demarcações de terras indígenas no país.

Tal situação ocorreria mesmo em áreas que não se tornarão mais terras indígenas, em razão do uso e ocupação do solo já estabelecidos como áreas urbanas ou agropecuárias, na contramão das terras que os indígenas juridicamente precisam para manutenção dos “usos e costumes” de suas respectivas etnias, como determina a própria Constituição Federal.

Foi criada uma insegurança jurídica sem precedentes, tanto em desfavor de proprietários de imóveis rurais centenários, como também em desfavor do planejamento territorial de todo o país, que necessita ser visto com eficiência em benefício de todos os brasileiros, índios ou não.

Segundo a nova “lei do marco temporal”, foi reforçado o entendimento de que existe mais de um tipo de terras indígenas, ou seja, aquelas que tradicionalmente ocupam, demarcadas pela própria definição de tradicionalidade e ocupação; as reservas indígenas, criadas por iniciativa do Poder Público; e as terras indígenas adquiridas pelos próprios nas formas de aquisição previstas em lei.

Estas definições não são inovadoras, pois já eram previstas pelo artigo 17 do Estatuto do Índio, contudo, fazem uma necessária atualização ao texto daquela antiga lei ao fazer menção à Constituição Federal de 1988, visto que o Estatuto do Índio faz referência à Constituição Federal de 1934.

Vale lembrar que na definição de terras indígenas tradicionalmente ocupadas, de acordo com o artigo 231, §1º da Constituição Federal, devem ser utilizadas para “reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”, o que reforça a argumentação de que terras indígenas demarcadas em áreas urbanas ou agropecuárias, tecnicamente não são e nem serão mais terras indígenas.

Para não deixar mais dúvidas, a mesma ideia foi reforçada pelo artigo 4º da nova lei do marco temporal que em seus incisos descreve como sendo terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas aquelas que simultaneamente sejam: “habitadas por eles em caráter permanente; utilizadas para suas atividades produtivas; imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar; necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. 

Isto coloca um ponto final à desenfreada demarcação em áreas de uso consolidado diverso das tradições indígenas, realçando também que a ausência da comunidade indígena em 5 de outubro de 1988 na área pretendida descaracteriza o seu enquadramento como tradicionalmente ocupada, salvo o caso de renitente esbulho devidamente comprovado, que é exatamente o entendimento que havia sido discutido de maneira ampla e fundamentada no caso Raposo Serra do Sol.

E seguindo a mesma linha de raciocínio jurídico já consolidado, também foi definido o renitente esbulho, como sendo o “efetivo conflito possessório, iniciado no passado e persistente até o marco demarcatório temporal da data de promulgação da Constituição Federal”, impedindo que sejam reconhecidas como terras indígenas aquelas em que não foi dada continuidade à posse desde então.

Outro aspecto importantíssimo e muito bem-vindo da nova legislação, é a obrigatoriedade de dar publicidade ao processo de demarcação de terras indígenas por meio eletrônico, finalmente encerrando uma árdua e tortuosa temporada de trabalho jurídico diligenciando em busca de cópias, litigando por acesso a processos e cópias fornecidos com muita dificuldade por sucursais da Funai em todo o Brasil.

Comemora-se a determinação de obrigatoriedade da participação dos Estados e Municípios em que se localiza a área discutida nos processos de demarcação, o que até então era de caráter facultativo.

Esta “opção” dos Estados e Municípios, por desatenção da nova lei, ainda é mantida pelo texto do artigo 2º, §7º do Decreto Federal nº 1.775/1996 ao registrar que “poderão os Estados e municípios em que se localize a área sob demarcação e demais interessados manifestar-se apresentando ao órgão federal de assistência ao índio razões instruídas com todas as provas pertinentes”.

A importância desta novidade é o fato de pôr fim à omissão da maioria dos estados em sua atuação nos processos de demarcação, cuja contribuição é essencial fornecendo documentos históricos e de ocupação fundiária.

A omissão é passível de indenização pelos danos causados, devido ao descuido no cumprimento de um dever legal, o de não se omitir, que agora passa a dar maior equilíbrio nesta relação processual onde atualmente existe apenas os proprietários de imóveis rurais contra a entidade de proteção aos indígenas (Funai), a mesma que os representa e conduz os processos.

Faltou à nova lei, incorporar o texto do artigo 2º, §7º do Decreto Federal nº 1.775/1996, para determinar expressamente a forma com a qual deveriam estes entes públicos participarem dos processos, o que ainda poderá gerar controvérsias e desnecessários embates jurídicos, entre as duas normas, uma que diz “poderá” e outra que diz “deverá” participar.

A lei do marco temporal inovou ao regulamentar também o artigo 231, §6º da Constituição Federal com relação ao direito de indenização pelas benfeitorias de boa-fé realizadas nos imóveis demarcados, ajudando a resolver controvérsias que já existem em casos analisados por tribunais neste sentido, simplificando o que antes era determinado que fosse solicitado em outro processo (Mandado de Segurança nº 4810, STJ), devendo agora indenizar “após a comprovação e a avaliação realizada em vistoria do órgão federal competente”. 

Houve um confronto da nova lei com a Instrução Normativa nº 02/2012 da Funai, pois esta última considerava que somente seria autorizada indenização, em benfeitorias para benfeitorias de boa-fé realizadas antes da “publicação da portaria do Ministério da Justiça que declara que a terra é indígena”, ato administrativo que não encerra o processo demarcatório.

O fim do processo de demarcação ocorre com o decreto do Presidente da República (artigo 5º, Decreto Federal nº 1.775/1996), um erro corrigido pela nova lei ao determinar que “Consideram-se de boa-fé as benfeitorias realizadas pelos ocupantes até que seja concluído o procedimento demarcatório” (artigo 9º, §1º), embora não tenha especificado qual o ato de conclusão do procedimento.

Em nada muda a falta de indenização do valor de terra nua ou do imóvel rural, pois em caso de declaração de que a terra em estudo é de posse indígena, significa dizer que em algum momento os indígenas dali foram expulsos, consequentemente caracterizando um imóvel pertencente à União Federal, sem esbulho de particular nem ato ilícito da Administração Pública, portanto, incabível indenização para não caracterizar desapropriação indireta (STJ, Recurso Especial 1.097.980/SC).

Porém, a nova lei favoreceu proprietários de “justo título de propriedade ou de posse”, cabendo indenização mais abrangente pelo imóvel rural em razão de “erro do Estado”.

Em outras palavras, o justo título pode ser definido como um documento que legitima a propriedade ou posse sobre o bem, sendo este formal como uma escritura pública, ou informal, como um contrato particular de compra e venda, onde deve prevalecer a boa-fé na convicção de que é titular do direito real sobre o bem amparado pelo título.

A nova legislação garantiu não apenas a transparência e publicidade dos atos praticados nestes processos como também a participação dos interessados “em todas as suas fases”, inclusive com a possibilidade de indicar peritos auxiliares e não apenas aqueles que trabalham em favor da Funai, por sua vez, em favor das comunidades indígenas por dever institucional.

E por falar em peritos e técnicos, outro ponto extremamente positivo para os processos de demarcação de terras indígenas foi a possibilidade de alegar impedimento e suspeição dos peritos e profissionais nomeados para fundamentar a demarcação, aplicando a regra do Código de Processo Civil.

Impedimento e suspeição são mecanismos fundamentais para garantia da imparcialidade e da justiça do procedimento demarcatório e de qualquer processo administrativo ou judicial no ordenamento jurídico brasileiro, em homenagem a outros princípios constitucionais basilares como o devido processo legal, contraditório e ampla defesa.

O impedimento, de acordo com o Código de Processo Civil, é situação objetiva e de ordem pública que impede o técnico nomeado de atuar em um processo, independentemente de sua vontade ou de sua relação com as partes, como por exemplo, o parentesco, inimizade com alguma das partes, interesse pessoal no processo, ter atuado como procurador da causa, ter testemunhado sobre o fato. A atuação de profissional impedido em um processo é causa de nulidade dos atos praticados.

A suspeição, por sua vez, diz respeito à uma situação subjetiva, em outras palavras, dúvidas razoáveis sobre a imparcialidade, mesmo sem relação direta que caracterize o impedimento, que leve à recusa de atuação, em razão de fundada suspeita de parcialidade, como por exemplo a amizade íntima ou inimizade com alguma das partes, ter manifestado opinião sobre o objeto do processo, o que pode ser declarado pelo próprio profissional ou arguido pelas partes, portanto, uma situação de interesse privado.

Em respeito às chamadas condicionantes do caso Raposo Serra do Sol, julgado pelo STF, a nova lei do marco temporal também incorporou a determinação de que “é vedada ampliação de terras indígenas já demarcadas”, respeitando ao menos um dos 19 (dezenove) daqueles pressupostos demarcatórios amenizando os conflitos neste sentido.

Verifica-se ainda o respeito a outra das condicionantes daquele caso julgado, no que diz respeito ao trânsito por áreas indígenas onde existem rodovias e meios públicos de passagem, expressamente proibindo o impedimento de passagem e a cobrança de qualquer tipo de tarifa ou pedágio (artigo 24, V e §3º; e artigo 25).

E no mais, a lei do marco temporal segue em regulamentação extensiva não apenas às terras tradicionalmente ocupadas, mas também regulamentou as reservas indígenas e terras de domínio dos indígenas para melhor esclarecimento, sem necessidade de maiores comentários.

Por fim, importante salientar que, há muitos anos é esperado que seja realmente dada autonomia às comunidades indígenas, ouvindo-os sem influências ou interferências de antropólogos, ONGs ou quaisquer outros interesses ocultos.

Esta autonomia veio a ser garantida pelo texto da nova lei ao dizer que “Cabe às comunidades indígenas, mediante suas próprias formas de tomada de decisão e solução de divergências, escolher a forma de uso e ocupação de suas terras” e que “É facultado o exercício de atividades econômicas em terras indígenas, desde que pela própria comunidade indígena, admitidas a cooperação e a contratação de terceiros não indígenas”, contudo, proibindo arrendamentos e parcerias que ameacem a “posse direta” dos indígenas.

 Este novo texto legal resguarda as próprias comunidades de abusivas tentativas de manipulação como no caso dos Pareci que já somam mais de 120 milhões de reais em multas aplicadas pelo Ibama por uso indevido de suas terras.

Ainda não é o fim das discussões e análises a respeito da demarcação de terras indígenas, visto que, ficou pendente de análise a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) nº 48/2023 e mesmo resolvendo diversas controvérsias, a nova lei do marco temporal já se encontra na mira de mais ações judiciais no Supremo Tribunal Federal (ADI 7582, ADI 7583, ADI 7586, ADC 87), ajuizada por partidos políticos que argumentam que não seria compatível com a proteção constitucional aos direitos dos povos indígenas sobre seus territórios.


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