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Scot Consultoria

Parte 1 - Enchentes no Rio Grande do Sul: consequências sanitárias em curto, médio e longos prazos para o gado gaúcho de corte


Terça-feira, 4 de junho de 2024 - 06h00

Médico-veterinário pela Universidade de São Paulo. É professor titular do departamento de clínica médica pela FMVZ-USP, especializado em Clínica de Ruminantes (ortolani@usp.br).



Liberaremos uma sequência de textos informando as consequências dos recentes acontecimentos no Rio Grande do Sul. Esta é a primeira parte da série.

Essa coluna consta de duas partes: A) Manejo Sanitário para o mês; B) Registro recente de doenças transmissíveis ou não, sugerindo medidas para suas prevenções. Tais registros são obtidos com o apoio das Agências Estaduais de Defesa Sanitária Animal, de Professores Universitários, do MAPA, da EMBRAPA, e da rede de contato de veterinários de campo, assim como minhas observações.

Frente a esta catástrofe que atingiu também o campo se levanta a questão de quais são as consequências sanitárias para o gado dos pampas, em curto, médio e longo prazo. Para levantar este panorama conversamos com nossas fontes gaúchas de informação veterinária e outros especialistas Brasil afora para constatar os fatos já ocorridos e os riscos que surgirão em futuro próximo. 

Curto prazo: fatalidades já ocorridas e riscos

Afogamento; fome; botulismo, intoxicação por mio-mio e por maria-mole...

Segundo informações recebidas, e pelas imagens mostradas na TV, muitos bovinos criados em áreas muito planas e alagadiças morreram afogados ou levados pela enxurrada. O número exato de mortes não é preciso, mas segundo o Presidente do Conselho Regional de Medicina Veterinário gaúcho, Dr. Mauro Moreira, o montante atingiu vários milhares de cabeças. Segundo o Jornal “A HORA” somente no município de Venâncio Ayres morreram 4.500 bovinos de corte e de leite. Uma previsão mais certa das baixas só o tempo dirá!

Figura 1.
Bovinos mortos na inundação.

Fonte: jornal “A hora”.

Foi relatado ainda que após uma semana do começo das inundações, com escasseamento dos alimentos, ocorreram a morte de muitas rezes, em especial as mais debilitadas e magras, por fome e desnutrição. Fiz trabalhos científicos com oferecimento restrito de alimentos para bovinos. Um animal bem nutrido pode permanecer mais de oito dias sem comer, apenas bebendo, obtendo energia das reservas de seu próprio corpo, o que falta aos mais debilitados, sendo os primeiros a morrer. Esse consumo de energia tem um preço alto, levando ao emagrecimento pronunciado. O que serve de consolo é que com a volta da alimentação normal os bovinos magros, por restrição de alimentos, terão um ganho compensatório, ao redor de 20,0% a 30,0% a mais que bovinos bem-nutridos, durante mesmo período que passaram por tal restrição, mas não se esqueça que principalmente nos primeiros quatro dias de realimentação os famintos comerão até 20,0% a mais de alimentos.

Com o abaixamento das águas e o surgimento de cadáveres, quer seja de aves, suínos, bovinos e até animais silvestres, associado a fome do gado, aumenta bastante o risco de morte por botulismo. Esta doença praticamente fatal é originária da ingestão da potente toxina botulínica produzida pela bactéria Clostridium botulinum. Nos intestinos dos animais há quase sempre a presença dessa bactéria, a qual após a morte da rês, em condições de ausência de oxigênio pela não abertura do cadáver, produz a toxina, que pode migrar para os tecidos e os ossos do cadáver. Com a decomposição do corpo, animais muito famintos e desnutridos, sem acesso à alimentação, podem comer pedaços de tendões e musculatura, e eventualmente ossos contendo a toxina. Além disto existe o risco de cadáveres ficarem decompostos dentro de açudes e bebedouros podendo contaminar a água com a toxina, sendo denominada de intoxicação hídrica. A toxina ingerida é absorvida e provoca no bovino uma paralisia muscular, com o animal exibindo bamboleamento das cadeiras, dificuldade para se locomover e ingerir alimentos, queda, morrendo em média em três a 10 dias dependendo, de seu estado corporal. A vacina contra o botulismo normalmente está presente dentre as proteções fornecidas pelas vacinas contra as “clostridioses”.  Assim, recomenda-se que o gado seja vacinado imediatamente, a não ser que a vacinação tenha ocorrido, em dose dupla, há menos de seis meses.  Deve-se enfatizar que a vacinação não protege completamente contra botulismo, principalmente quando as doses de toxina ingerida forem muito altas. Outra medida fundamental é a retirada, com devido colocação dos cadáveres em covas profundas, ou queima das carcaças de animais, para evitar que sejam ingeridos pelos sobreviventes!

Figura 2.
Bovino faminto comendo carcaça de outro animal.

Fonte: Enrico L. Ortolani

Figura 3.
Bovino acometido de botulismo.

Fonte: Enrico L. Ortolani

Figura 4.
Destino adequado das carcaças é fundamental.

Fonte: Enrico L. Ortolani

Na região de Uruguaiana, um pesquisador da Universidade Federal do Pampa descreveu a morte de mais de uma dezena de bovinos, de várias propriedades que foram inundadas, pela ingestão da planta arbustiva popularmente chamada de Mio-Mio (Baccharis coridifolia). A morte ocorre 10 a 30 horas após a ingestão de cerca de 0,5 g da planta por quilo de peso corporal, com os animais apresentando os seguintes sintomas: perda de apetite, intranquilidade, levando o animal a deitar e se levantar seguidas vezes, dificuldade de se locomover, mostrando cambaleio das “cadeiras”; excesso de ingestão de água, queda definitiva e morte dentro de poucas horas. As toxinas da planta causam grandes lesões no rúmen (bucho) intestinos, fígado e baço. O tratamento sugerido é com carvão ativado (100 g) e cal hidratado (50 g) misturado à água e administrado via oral, porém os resultados são muito incertos.

A planta, por não ser apetitosa, é pouco ou nada ingerida pelos bovinos nativos da região, mas acredita-se que devido à fome e o fato de a planta não ser encoberta pela inundação, fez com que os bovinos a ingerissem em grandes quantidades. O Mio-Mio é encontrado em toda região oeste do RS, parte do planalto catarinense, sul do PR e na região de Itararé no sudoeste de SP. 

Figura 5.
Mio-mio (Baccharis coridifolia) em floração - ocorre entre março e maio.

Fonte: Enrico L. Ortolani

Figura 6.
Surto de intoxicação por mio-mio (Baccharis coridifolia).

Fonte: Enrico L. Ortolani

O mesmo pesquisador citado acima, descreveu focos de intoxicação em bovinos pela ingestão da planta arbustiva conhecida como Maria-mole, ou flôr-das-almas (Senecio brasiliensis), que nesta época do ano cresce em grande quantidade nos campos sulinos, podendo também vegetar em outros estados da região sul e no estado de SP. Por ser apetitosa e estar disponível, os bovinos comem bastante, principalmente onde os pastos estão ralos. Para complicar, a concentração da toxina (alcalóide pirrozilidínico) na planta jovem é mais alta (de abril a junho) podendo ser mais letal. Os sintomas são os seguintes: falta de apetite, fezes ressecadas, perda de peso, forte contração abdominal, surgimento de sintomas nervosos (andar sem rumo, ou em círculos, pressão cabeça em obstáculos etc.) e morte em até 10 dias. Os principais órgãos lesados são a língua (glossite diftérica), o fígado, o abomaso e o sistema nervoso central. Sugere-se a retirada dos bovinos das pastagens muito praguejadas com Maria-mole.  

Figura 7.
Maria-mole (Senecio brasiliensis), em plena floração.

Fonte: Enrico L. Ortolani

Figura 8.
Pastagem muito praguejada por maria-mole (Senecio brasiliensis).

Fonte: Enrico L. Ortolani

Figura 9.
Úlcera embaixo da língua pode ser indicativa da intoxicação por maria-mole (Senecio brasiliensis).

Fonte: Prof. David Driemeier

Riscos a médio prazo

Contaminação de alimentos, leptospirose e tétano...

Existe uma alta probabilidade da ingestão de alimentos contaminados pela água da inundação, em especial os armazenados em silos e depósitos de ração. No caso da silagem de milho ou sorgo, aumenta o risco de contaminação pelas bactérias do gênero Clostridium (espécies sporogenesis e bifermentans). No caso do Clostridium, o risco é maior ainda se a silagem foi feita a pouco tempo. Essas bactérias em vez de produzir ácido láctico, que preservam a silagem, aumentam o ácido butírico e atacam as proteínas gerando aminas tóxicas e cheiro de peixe podre. Bovinos que comem essa silagem podem ter intensa diarreia, diminuição do apetite e grande perda de peso. 

Outra bactéria problemática que pode contaminar a silagem é a Listeria monocytogenes, originária das fezes dos animais. Alguns dias após sua ingestão o bovino pode que apresentar febre e um complicado quadro nervoso (andar em círculos, paralisia de músculos da face, tremores musculares etc.), que pode levar à morte, principalmente animais estressados. Felizmente, a listeriose é pouca descrita e frequente em nosso meio, mas é bom prestar atenção. Nossa sugestão é evitar o oferecimento de alimentos contaminados pela inundação para bovinos. 

Figura 10.
Diarreia causada por silagem estragada.

Fonte: Enrico L. Ortolani

Figura 11.
Vaca com listeriose com sintomas nervosos.

Fonte: Enrico L. Ortolani

Outra doença que o criador deve estar atento é a leptospirose. Ela é causada pela infecção de bactérias do gênero Leptospira, que geralmente são contraídas por ingestão de água contaminada por este microrganismo. Estudos brasileiros indicam que 85% das infecções estão ligadas à contaminação da água ou de alimentos com essas bactérias provenientes da urina dos próprios bovinos, que mantêm a bactéria nos seus rins. Segundo o levantamento, outros 5% dessas contaminações podem ser oriundas de urina de ratos, ratões de banhado, capivaras etc. Os outros 5% podem ser transmitidas pela relação sexual com o touro, com o aspecto de uma doença venérea. Em situações de inundação o risco de leptospirose aumenta bastante, pois os bovinos têm maior acesso à água contaminada. A principal vítima da leptospirose é a vaca prenhe, que pode apresentar mortalidade embrionária até o 25º de gestação ou abortamento a partir do 5º mês de prenhez. O tempo que demora entre a ingestão de água contaminada e a perda gestacional varia de 8 a 20 dias. Fêmeas que foram duplamente vacinadas contra leptospirose (vacina reprodutiva) nos últimos quatro a cinco meses, antes da inseminação ou início da estação de monta, têm uma proteção de no mínimo de 80%. Porém, recomenda-se em vacas e touros que não foram imunizados recentemente que a vacinação seja imediata, com repetição após 45 dias. 

Figura 12.
Abortamento causado pela leptospirose.

Fonte: Enrico L. Ortolani

Outra doença que pode surgir é o tétano, causado pela bactéria Clostridium tetani. A enfermidade é proveniente da contaminação de feridas com a bactéria, que produz uma potente toxina, geralmente após 12 a 15 dias após o surgimento, quando a ferida começa a cicatrizar e a se fechar. A chance de a doença acontecer é grande pois, a frequência de ferimentos cortantes é alta durante as enchentes, e a água das inundações é bastante contaminada com C. tetani, oriunda de fezes de animais (com destaque a do cavalo). Enquanto o botulismo provoca paralisia muscular, o tétano causa exatamente o contrário, ou seja, contração contínua muscular, praticamente irreversível. Diferente do que muitos dizem, bovinos que foram duplamente vacinados contra tétano (por exemplo, na desmama e um mês após), são resistentes à doença até 3 anos após a vacinação. Caso essa proteção já tenha se expirado, principalmente para animais mais velhos, a vacinação deve ser imediata, com revacinação após um mês.

Figura 13.
Bezerro com tétano. 

Fonte: Enrico L. Ortolani


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