Médico-veterinário pela Universidade de São Paulo. É professor titular do departamento de clínica médica pela FMVZ-USP, especializado em Clínica de Ruminantes (ortolani@usp.br).
Esta é a continuação da nossa série de publicações sobre os impactos dos eventos recentes no Rio Grande do Sul. Para ler o texto anterior (Parte 1), clique aqui.
Essa coluna consta de duas partes: A) Manejo Sanitário para o mês; B) Registro recente de doenças transmissíveis ou não, sugerindo medidas para suas prevenções. Tais registros são obtidos com o apoio das Agências Estaduais de Defesa Sanitária Animal, de Professores Universitários, do MAPA, da EMBRAPA, e da rede de contato de veterinários de campo, assim como minhas observações.
Raiva; tristeza parasitária, fasciolose; paranfistossomose...
É possível que aumentem os focos de raiva bovina, em rebanhos não vacinados, recentemente, em dois momentos: dentro dos próximos dois meses, com um segundo pico de ocorrência daqui 12 a 15 meses no RS. Segundo especialistas paulistas no assunto, a principal causa é a inundação de muitas cavernas e abrigos atuais de morcegos, deslocando a população de alados para locais mais seguros. É possível que muitas casas e pequenas instalações rurais abandonadas, após a inundação, virem novos abrigos. Além da busca por uma habitação, a população de morcegos tem que se estabelecer onde tem alimentação farta, principalmente onde existem animais de sangue quente, com destaque aos bovinos e equinos, podendo migrar até 40 a 50 km a busca de um local ideal. Nessa migração uma única colônia de morcegos pode se dividir e se estabelecer em várias novas colônias, multiplicando a população de alados.
Assim, os possíveis surtos da doença a curto prazo podem ser advindos de morcegos contaminados com o vírus rábico que se deslocaram para novas regiões, em que a raiva bovina não era tão frequente. A longo prazo é esperado que ocorra um grande aumento de população de morcegos no estado, devido ao surgimento e o espalhamento de novas colônias. Estima-se esse novo pico de raiva ocorra em 12 a 15 meses, pois a gestação das morcegas dura cerca de sete meses e os jovens morcegos começam a predar suas vítimas a partir do 5º mês de vida.
Os pesquisadores consultados lembram e comparam a situação da atual inundação no RS com o grande surto de raiva bovina que ocorreu na década de 1980, na região noroeste do estado bandeirante. Com o fechamento das comportas de uma nova usina termoelétrica (a de Três Irmãos) no rio Tietê dezenas de cavernas foram inundadas, deslocando as colônias de morcegos, que se alimentavam na beira do rio principalmente de animais silvestres (antas, capivaras, veados etc.) para locais em que bovinos eram maciçamente criados e não devidamente vacinados.
A vacinação contra raiva oferece proteção de até um ano para bovinos, assim recomenda-se que rebanhos gaúchos não vacinados recentemente sejam imunizados agora contra raiva, repetindo a dose daqui 365 dias.
Figura 1.
Bovino com raiva.
Fonte: Enrico L. Ortolani
Tudo indica que a presente tragédia no território gaúcho diminua drasticamente o número de carrapatos no gado, pois as jabuticabas (teleóginas) adultas cheia de sangue que caíram dos bovinos, neste período no solo para colocar seus ovos, e as futuras larvas, morrem após ficarem três dias submersas na inundação. Assim espera-se que ocorra uma infestação muito pequena de carrapatos a médio prazo no gado dos pampas. Embora esse menor ataque de carrapatos tenha um lado positivo, por outro lado os bovinos, principalmente jovens, não terão contato com os agentes que causam a tristeza parasitária (Anaplasma spp. e Babesia spp), e que são transmitidos pelos carrapatos. Essa falta de contato com esses agentes não induzirá nesses bovinos jovens produção de anticorpos contra eles. Em outras palavras, quando daqui oito a dez meses esses animais ficarem “carrapatados” terão um alto risco de apresentarem a maléfica tristeza parasitária, que pode se apresentar de forma muito grave. De olho nisso!
Figura 2.
Bovino jovem com tristeza parasitária.
Fonte: Enrico L. Ortolani
As inundações devem rapidamente favorecer o crescimento populacional de certos caramujos (gênero Lymnaea e gênero Planorbis) que são hospedeiros intermediários (HI), respectivamente, de dois vermes chatos (Fascíola hepatica e o Paramphistomum cervi) que parasitam bovinos. Os caramujos são fundamentais para que formas jovens desses parasitas penetrem neles, se multipliquem e se tornem mais aptos, para em seguida infestarem os capins a beira dos banhados e sejam engolidos pelos bovinos. Como o próprio sobrenome do parasita diz a F. hepatica parasita o fígado de bovinos e o P. cervi o intestino delgado e o rúmen. Os dois parasitas são comumente encontrados no gado gaúcho, mas acredita-se que dentro de pouco tempo provocarão surtos em gado que pasteja em baixadas recém-inundadas e várzeas de plantação de arroz. No RS é comum após a colheita do arroz de várzea a colocação de bovinos para pastejar na área. Ambos os parasitas provocam diarreia, anemia e perda de peso, e ocasionalmente morte (vide a última notícia do RADAR para entender melhor a ação do Paramphistomum). Para combater a fasciolose e a paranfistossomose recomenda-se que o gado de corte gaúcho, de área em que a doença normalmente acontece, em especial em área de banhados, seja tratado dentro dos próximos trinta dias com anti-helmínticos a base de nitroxinil.
Figura 3.
Caramujo Lymnaea spp (hospedeiro intermediário – HI) da Fasciola hepática.
Fonte: Enrico L. Ortolani
Figura 4.
Caramujo Planorbis spp (hospedeiro intermediário – HI) do Paramphistomum cervi.
Fonte: Enrico L. Ortolani
Agora que as águas parecem baixar, vão se contabilizar os prejuízos na pecuária de corte. Além da reconstrução das instalações, enterro dos cadáveres, oferta de alimentos descontaminados ao gado, é fundamental a vacinação e vermifugação contra várias doenças, como exposto e priorizado pelo RADAR SANITÁRIO. A pergunta fatal é quem vai pagar a conta? Uma parte significativa dos pecuaristas teve grandes prejuízos com a criação, as instalações, os equipamentos e muitas vezes até com sua moradia. O tempo urge e muitas medidas devem ser tomadas com presteza. Segundo a mídia, a Confederação da Agricultura e Pecuária do RS vai investir R$ 100 milhões no setor, o que é muito pouco, pois vai ser dividido em muitas atividades agropecuárias, provavelmente sobrando pouco para a pecuária de corte. O quanto a Secretaria da Agricultura do RS e o MAPA vão investir na área de prevenção sanitária ainda é incerto. Segundo uma fonte do MAPA, normalmente o Ministério não disponibiliza vacinas e outros medicamentos veterinários, limitando-se a aprová-los e manter os registros mediante processos de fiscalização. Mas sugiro que outras Instituições, incluindo as já citadas, como as mais variadas Associações de Criadores, o SINDAM, que representa as indústrias veterinárias que produzem vacinas, vermífugos e outros medicamentos, a ASBRAN, a ABPA etc. possam especificamente prover estes principais produtos urgentes para a prevenção sanitária, para não aumentar mais os prejuízos do já combalido e descapitalizado pecuarista gaúcho. Ficamos na torcida!
Segundo recomendações da Embrapa, chegou a hora de vermifugar estrategicamente todos os bovinos desmamados até os dois anos de idade, criados em todo o Rio Grande do Sul e no planalto catarinense. As regiões não-serranas de Santa Catarina têm um clima mais semelhante as do Brasil Central e realizam tal vermifugação em outros meses. Os parasitologistas da Embrapa indicam nessa etapa o emprego de anti-helmínticos a base de levamisole. A vermifugação estratégica além de reduzir a quantidade de vermes diminuí também a contaminação das pastagens com as larvas de parasitas, evitando no período que se segue novas infestações gastrointestinais e pulmonares ocorram.
É completamente entendível a dificuldade que os pecuaristas gaúchos têm no momento. Várias medidas de prevenção, em conjunto com essa, são sugeridas no segmento abaixo. Força pecuaristas dos pampas, vocês irão reconstruir um belo trabalho que é tradicional neste estado sulino! Qualquer dúvida sanitária que tiverem escrevam para gente. Como se diz lá no Norte: não se avexem não!
Figura 5.
Fasciola hepatica parasitando o fígado.
Fonte: Enrico L. Ortolani
Figura 6.
Intestino muito inflamado na paranfistomatose.
Fonte: Enrico L. Ortolani