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Feno-em-pé, Creep-Feeding, semi-qualquer-coisa: o tanto que há de (des) informação em cada nome na pecuária


Sexta-feira, 17 de janeiro de 2025 - 06h00

Engenheiro agrônomo, formado pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo, com mestrado e doutorado pela mesma universidade. É pesquisador da Embrapa Pecuária Sudeste e especialista em nutrição animal com enfoque nos seguintes temas: exigência e eficiência na produção animal, qualidade de produtos animais e soluções tecnológicas para produção sustentável.


Foto por: Bela Magrela


A pecuária brasileira se destaca por sua abrangência nacional e uma infinidade de formas de produção. Essa diversidade acaba se traduzindo em terminologias nem sempre muito precisas. 

O objetivo deste texto é usar alguns exemplos de nomes dados às coisas da pecuária que podem ser inexatos, contraditórios, ambíguos, esquisitos e, até, induzirem a interpretações erradas. 

É uma lista de implicância pessoal, ou seja, não se trata de ter a ilusão de mudar algo do que é corrente de repente, mas, aproveitar para fazer algumas reflexões e, quem sabe, conseguir alguma adesão a alguma forma alternativa que seja mais fiel à realidade. Segue a lista com as reflexões e sugestões:

1 Feno em pé: Abre a lista por ser um dos que mais leva a pessoa a ter uma ideia errada do que seja o feno, forma de conservação de forragem por redução da umidade. Para quem não conhece, o termo “feno-em-pé”, ele é usado para a pastagem que é acumulada no período das chuvas com vistas a ser usada nas secas, conhecido como pasto diferido ou pasto vedado. 

O diferido seria sinônimo de postergado, remetendo ao resguardo do uso da pastagem em um segundo momento. O vedado, significando que o acesso ao pasto pelos animais foi impedido, exatamente para acumular a forragem. Essa forragem cresce por 90-120 dias e esse longo tempo de crescimento resulta em uma forragem muito lignificada e com teores de carboidratos não fibrosos e proteína bem reduzidos.

 A ideia do processo de vedação é trocar qualidade por quantidade, para que haja segurança de haver massa de forragem na seca. É essa massa de forragem de baixo valor nutritivo, resultado da vedação ainda nas águas, que alguns chamam de “feno-em-pé”, sendo a maior semelhança com o feno o mais alto teor de matéria seca (MS) em relação a uma pastagem convencional. Em uma pastagem com poucos dias de crescimento, o teor de MS pode ser menor que 20%. 

Na pastagem vedada, o dobro disso. Já, no caso do feno, é importante que a matéria seca seja maior do que 85,0% para que o valor de umidade menor que 15,0% não permita sua deterioração. Mas, o grande problema é igualar o feno “não em pé” a algo de baixo valor nutritivo como ao “feno em pé”. O pior de fazer essa associação é que, muitas vezes, o feno comercializado por aí é de baixa qualidade, mesmo porque, para quem produz feno, o ganho se realiza na quantidade vendida, salvo ele for vendido com um laudo que ateste sua qualidade, algo ainda não usual. 

O feno de gramíneas, assim como, recomendado a ser produzido, vai ser colhido com cerca de 50-70 dias de crescimento, para que haja um bom balanço entre biomassa produzida e a qualidade do material. Assim, o feno, de verdade, é algo de muito melhor qualidade do que a forragem de um pasto vedado e dar o mesmo nome aos dois, com a diferenciação que um estaria “em pé”, e o outro não, induz a aceitar um feno de baixa qualidade ou esperar resultados irrealisticamente bons com pasto vedado. Nesse caso, recomenda-se não deixar em pé essa terminologia e usar forragem diferida ou vedada.

2 Semiconfinamento: Esse nome tem uma contradição implícita visto que, assim como não se pode estar “ligeiramente grávida”, como dizia uma famosa canção dos anos 1980 em que a jovem cantora dava a notícia que sua mãe seria precocemente avó, não se pode estar “ligeiramente confinado”: ou bem se está, ou não. 

De fato, essa prática não tem nada de confinado, pois os animais recebem o suplemento concentrada na pastagem. O semiconfinamento clássico seria aquele em que é fornecido cerca de 1% do peso do animal de um concentrado, para ganhos entre 0,7 e 1,0 kg por cabeça por dia. 

A variação é grande, pois cerca de metade da MS do que o animal ingere é o “feno em pé” ... perdoem-me... a forragem vedada, que pode ter valores nutritivos variáveis e que reduzem ao longo da seca, especialmente pela redução da relação folha: caule. Veja que, nesse caso, a implicância é um tanto quanto por certo purismo semântico, sem maiores consequências. Uma sugestão alternativa poderia ser “Suplementação semi-intensiva na pastagem”, mas é pouco provável que alguém prefira essa alternativa, por ser mais longa e, também, questionável. Devemos seguir com o contraditório termo, salvo alguém tenha uma inspiração para uma alternativa melhor.

3 Confinamento a pasto: O argumento contra essa terminologia é exatamente o mesmo do semiconfinamento, ainda que, uma vez que é fornecido o concentrado em quantidade quase equivalente ao consumo total esperado, entre 1,7-2,0% do peso, o espaço de pasto pode ser reduzido, pois deve haver massa de forragem apenas suficiente para o animal consumir fibra que irá fazê-lo ruminar e não entrar em rota de acidose. 

Na verdade, essa modalidade deve manter o animal a maior parte do tempo em acidose subclínica, alternando com breves períodos mais saudáveis do rúmen à medida que o animal evite um pouco o concentrado e sinta necessidade de ingerir a fibra da pastagem, que deve estar disponível para ele encontrar! Todavia, ao contrário do “semiconfinamento”, que claramente depende bastante do pasto, o “confinamento a pasto” dá a entender ser equivalente ao confinamento o que, obviamente, não é. Faz muita diferença, como no confinamento raiz, ter uma dieta completa que pode ser formulada com grande exatidão para os animais que se destinam e que é fornecida como dieta total, com todos os componentes da dieta exercendo sua influência simultaneamente, e sendo fornecida em mais de duas ou três refeições, para ajudar haver um ambiente ruminal mais estável. 

Além disso, no confinamento, o gasto energético com movimentação é negligenciável e, na pastagem, ele pode ser responsável por uma significativa redução de desempenho. O grande diferencial é mesmo que, no confinamento, tem-se controle quase absoluto das condições, enquanto no “confinamento a pasto”, para muitas delas temos muito pouco controle. No caso do primeiro, a grande vantagem é ter um resultado melhor por um planejamento detalhado, bem como escalar seu tamanho é mais fácil, enquanto, no “confinamento a pasto”, o forte é sua versatilidade, ou seja, pode-se optar por fazer ou não quase que num piscar de olhos, mas é mais difícil escalar. O nome alternativo seria “Suplementação intensiva na pastagem” e, quando é para terminação, que costuma ser o caso, já se tem um uso consagrado e satisfatório de “Terminação intensiva de pastagem” que, ainda por cima, tem a sonoro e irresistível acrônimo TIP.

4 Sequestro/Resgate: Ainda na seara de confinar animais, tem aumentado a prática de colocar animais em recria no confinamento, sem fins de terminação. Isso seria feito especialmente para manter um ganho um pouco maior do que seria obtido no pasto de fim de seca, quando a relação folha: caule está bem baixa e o desempenho do animal despenca. Além disso, essa prática teria a vantagem de permitir que a rebrota dos pastos na volta das chuvas ocorra sem a presença dos animais, evitando os episódios de diarreia (enxurrio) nestes e um melhor condição da pastagem quando de sua reutilização. O termo usado para isso foi “Sequestro”, mas algumas pessoas parecem ter implicado com um nome de uma ação criminosa e agora, para a mesma prática, usa-se o termo “Resgate”.  Independente da opção, eles são pouco informativos, mas achar um nome curto e que ajude a entender do que se trata é realmente difícil. Uma tentativa seria “confinamento de transição” ou “transição confinada”, remetendo ao fato de visar uma melhor transição águas/seca, tanto para os animais, como para o pasto.

5 Talo/Haste/Colmo: Esse aqui de todos seria a implicância mais de fundo científico, por se tratar de um detalhe botânico. Foi com o Dr. Arnildo Pott, quando colega na Embrapa Gado de Corte, que aprendi que “Haste” é um termo botânico, sim, mas não é adequado para gramíneas, mas que serviria para leguminosas herbáceas. Que “Colmo” é caule com nós e entrenós, como na cana-de-açúcar ou no bambu. Por fim, que, em caso de dúvida ou de haver mais de um tipo, o termo caule resolveria. Talo seria o mais rústico e nem suscitou qualquer comentário desse que, seguramente, é um dos cientistas com maior conhecimento das plantas do nosso Pantanal, com um lindo trabalho de décadas em parceria com sua esposa Vali Pott, ambos atualmente trabalhando na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Um casal que, certamente, a ciência brasileira deve muito. 

Todavia, apesar de ter usado o termo relação folha: caule por aqui, nos textos de pastagem é mais comum o uso do termo folha: colmo. Enfim, é complicado ir contra termos consagrados, ainda mais quando se trata apenas de uma norma da botânica.

6 Creep-feeding: A implicância poderia ser por ser um termo estrangeiro, emprestado do inglês, de onde veio essa prática de suplementação para o par vaca-bezerro. Isso, quando, nos seus primórdios, a opção utilizada para que apenas os bezerros tivessem acesso ao alimento era evitar a entrada de suas mães pela altura do último fio que cercava o local com alimento exclusivo para as crias.  “Creep” significa rastejar, que era que os bezerros tinham que fazer para acessar o suplemento. 

O problema é que algumas vacas mais atléticas e com melhor flexibilidade, por vezes, conseguiam furar esse bloqueio. Com o aprimoramento da técnica, o acesso começou a ser restringido pela largura e, daí, o nome ficou desatualizado. Um nome em nossa língua pátria seria “Suplementação de acesso exclusivo ao bezerro” que dificilmente alguém vai querer falar em vez do termo consagrado como na clássica pergunta: “Compensa fazer Crip?”.

7 Programação Fetal: A programação fetal é um fenômeno pelo qual, em fetos que passam por fases de restrição nutricional intrauterina, seu organismo entende isso como um aviso que “as coisas lá fora não estão favoráveis” e, daí, é programado para se desenvolver menos e, consequentemente, ter menores exigências. Desta forma, viveria mais de acordo com um ambiente de restrição de recursos. Ele foi descoberto primeiramente em humanos, em estudos holandeses com dados de crianças daquele país cujas mães haviam sido expostas a dietas extremamente restritivas pelo racionamento de alimentos na II Grande Guerra e, mais tarde, comprovado em animais. Por isso, hoje sabemos que a manutenção da boa nutrição da matriz, mantendo sempre boa condição corporal, não influi apenas na sua reprodução futura, mas em não programar o futuro animal a ser menos do que seu potencial genético permitirá. A implicância com o termo seria, portanto, que a “programação” seria para o lado negativo e o que queremos é que ela não ocorra. “Antiprogramação fetal”? Seria está uma opção aceitável?

8 Ureia protegida: A implicância aqui é que não há um genuíno interesse em proteger a ureia, no sentido de passar incólume pelo rúmen, mas apenas reduzir a velocidade com que ela disponibiliza o seu nitrogênio para ser mais eficientemente incorporado como proteína pelos microrganismos ruminais. Ureia protegida passaria o rúmen e teria um papel praticamente irrelevante, tirando aumentar a fermentação no ceco, onde ainda há produção e absorção de ácidos graxos de cadeia curta, mas com muito menos benefício, inclusive da proteína microbiana produzida por lá apenas deixar as fezes com esse desperdício de fonte proteica de alto valor biológico. Ureia de liberação lenta, em relação à convencional, seria um termo mais adequado

9 Carga genética: Trata-se de um termo muito usado como positivo sobre a genética de um animal, mas tecnicamente, refere-se a toda herança genética de uma população de animais, o que inclui a parte ruim da herança. Assim, especialmente para os locutores de leilões, é bom evitar falar “Um show de carga genética!” preferindo o mais simplório “Um show de genética!”.

10 Descarbonificar a agropecuária: Esse é o mais impactante e o que ainda menos teria qualquer pretensão de mudar, mas é o mais interessante, pois corrigi-lo coloca a direção certa para onde deve ir o grosso do carbono (C) no caso da agropecuária. Em todos os setores, sem exceção, deve-se reduzir a emissão de C, que contribuem para o aquecimento global que causam as mudanças climáticas. Nos setores de energia e transporte, os principais emissores, isso significa usar menos combustíveis de origem fóssil e o termo descarbonifcação se aplica a perfeição. 

No caso da agropecuária há pontos que seriam semelhantes e, por exemplo, se for criado um processo de ensilagem que use menos energia ou que use energia solar, estamos descarbonificando o setor. Porém, na maioria dos casos, o que estamos fazendo é melhorando processos biológicos que retém o C e, portanto, o termo certo seria “carbonificar a agropecuária”. O melhor exemplo é a principal fonte do setor: a fermentação entérica dos nossos ruminantes. No processo de fermentação no rumem, o metano (CH4) é produzido como resíduo. Ele é eliminado quase que totalmente por eructação pelo animal (o popular arroto) e não por flatulência (o, ainda mais popular, pum), como frequentemente se escuta por aí. Pela formulação da dieta, manejo das pastagens, uso de aditivos podemos fixar uma parte do C que seria perdido como metano, produzindo mais carne, leite ou lã, portanto, mais uma vez, estamos “carbonificando” a agropecuária. 

Sem contar que, para remoção de C da atmosfera a nossa velha e boa fotossíntese é uma opção fabulosa. Não à toa, os sistemas silvipastoris são uma excelente forma de remoção de carbono pelas árvores junto com produção de alimentos, diversificação de produção e melhora do conforto animal. Na agropecuária, portanto, quanto mais C, melhor. Basta que ele esteja no lugar certo.

Essa seria uma pequena amostra dos termos e o quanto eles rendem uma boa conversa. Pela própria inexatidão deles, pode ser que algum destes aqui elencados seja usado com outra significação para algum dos leitores. Se for o seu caso, por favor, não deixe de se manifestar, pois o intento é mesmo gerar debate para melhor entendimento das coisas e, quem sabe, alguém inspirado vir com terminologias que sejam mais informativas e exatas, e, principalmente, ganhem a adesão dos usuários. Temos só a ganhar, seja pelo debate, seja por um termo que precise menos explicações e/ou seja menos passível de crítica.


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