Prof. Dr Pedro Eduardo Felício, por ele mesmo.
Estudei veterinária pensando em cuidar de animais, especialmente vacas leiteiras, mas cedo na carreira fui atraído pela idéia de trabalhar no Centro de Tecnologia de Carnes, à época uma parceria entre o Instituto de Tecnologia de Alimentos e a Embrapa. Não me arrependo da decisão porque tive a sorte de me permitirem concluir o mestrado que havia iniciado, na USP de Ribeirão Preto, enquanto fui professor de Zootecnia em Jaboticabal e, mais adiante, pude estudar em Kansas, nos Estados Unidos. Foi por esse caminho que cheguei à Unicamp, onde leciono há 25 anos, tendo sido chefe de departamento, coordenador de pós-graduação - função que desempenho agora pela segunda vez - e diretor-adjunto da Faculdade de Engenharia de Alimentos. Em março do ano passado, concorri ao cargo de professor titular da área de carnes e fui aprovado.
Gosto de salientar que, ao final de 1989, recebi um convite para coordenar a implantação do novo campus da USP de Pirassununga, numa fazenda de mais de dois mil hectares. Aceitei e cumpri um mandato de quatro anos, penso ter feito um bom trabalho como administrador e gostei de ter feito.
Scot Consultoria: Sabemos que qualidade é algo bastante subjetivo. Mas é possível definir hoje o que seria uma carne de qualidade, em termos de aceitação mundial? E como a carne brasileira está inserida nesse contexto?
Prof. Pedro Felício: Qualquer alimento pode ter sua qualidade esmiuçada, primeiro em termos higiênico-sanitários; depois, em conformidade, ou seja, no atendimento a padrões e especificações técnicas; e, em seguida, quanto à qualidade funcional, que é o que os consumidores percebem como qualidade ao comprar e, depois, ao consumir o alimento.
Em se tratando de carne, a questão higiênico-sanitária tem importância ainda maior do que nos alimentos de origem vegetal. O Brasil está muito bem neste item, mesmo não estando tudo resolvido. Na parte da conformidade ainda há muito por fazer, e (no que realmente interessa ao consumidor) só mais recentemente tem surgido algum interesse do setor pela aparência, proporção de músculo e gordura, conveniência, maciez, sabor e suculência.
Estas três últimas características referem-se apenas aos cortes da região dorsal: alcatra, contrafilé e filé, mas é justamente neles que deveríamos agregar muito mais valor melhorando a alcatra e o contrafilé, com garantia de qualidade para restaurantes, com base numa análise de pontos críticos onde entram: genética, manejo, alimentação, idade certa para abate, combate ao estresse no pré-abate, velocidade de resfriamento, etc. Como o nível de exigência é muito alto na Europa, utilizam a carne tropical brasileira em “catering” (serviços de alimentação e refeições prontas), e, nos supermercados, para ofertas a preços vantajosos para o consumidor.
Até onde sabemos, para a Rússia e todos os outros importadores a carne sul-americana é de muito boa, em termos de qualidade, em todos os requisitos já mencionados.
Scot Consultoria: Quais os papéis da indústria e do pecuarista na produção de uma carne de qualidade? Eles estão trabalhando em sintonia?
Prof. Pedro Felício: Penso que há algumas iniciativas isoladas daqueles que pretendem valorizar uma marca que conquiste a preferência do consumidor de maior poder aquisitivo e do segmento de refeições fora de casa, que vem crescendo muito rapidamente no país.
Consta que uma das grandes empresas frigoríficas nacionais é líder nesses arranjos, porque o presidente da mesma vem do comércio, onde aprendeu a compreender as necessidades dos clientes e consumidores. E tem também os selos de qualidade de associações de criadores de gado. Muitas experiências foram feitas com “novilho precoce” via associação de produtores ou núcleos, como o de Uberlândia, por volta do ano de 1999, mas a verdade é que os frigoríficos não têm interesse por gado jovem de acabamento e peso insuficientes, porque deixa poucos créditos de subprodutos e envolve os mesmos custos operacionais do gado mais pesado e mais gordo.
Scot Consultoria: No caso específico do produtor, várias ferramentas/tecnologias estão disponíveis para a padronização de carcaças e melhoria da qualidade da carne, dentre elas tem-se o melhoramento genético, o confinamento (e outras tecnologias de nutrição), a intensificação de pastagens, etc. Qual delas o senhor julga ser a mais importante? Ou na verdade o que importa é uma boa interação entre elas?
Prof. Pedro Felício: Creio que tudo que é feito para melhorar a produtividade também resulta em melhoria de qualidade das carcaças, como genética e alimentação para aumentar o peso à desmama e o ganho de peso pós-desmama, de modo a reduzir a idade de abate proporcionando um acabamento de gordura satisfatório. Associar isso tudo com a castração também é da maior importância.
Só tenho alguma desconfiança quanto ao confinamento no estilo americano, porque embora possa melhorar a qualidade funcional da carne, vai descaracterizar a carne tropical brasileira de produção a pasto, como parece já estar acontecendo com a carne argentina.
Isto tudo tem a ver com a qualidade da carcaça, mas obviamente influencia na qualidade da carne também, embora não seja suficiente porque fica faltando a parte das tecnologias post-mortem, que acontece dentro da indústria frigorífica.
Scot Consultoria: Sabemos que muitas vezes o produtor se sente desestimulado a investir na melhoria da qualidade de carcaça. Os programas de classificação e bonificação, criados pelos frigoríficos, podem ser a solução para esse problema? Eles têm atingido esse objetivo?
Prof. Pedro Felício: Só bem recentemente teve início no Brasil um processo de definição de uma “linguagem” comum a toda a cadeia produtiva da carne. Pode não ser muito correto dizer “toda a cadeia” porque o segmento de açougues e supermercados insiste em ficar distante deste tema, mas já é uma grande coisa que pecuaristas e frigoríficos estão se entendendo a respeito de peso de carcaça, acabamento, maturidade, castração dos machos e manejo pré-abate adequado para evitar contusões.
Já temos iniciativas muito interessantes em termos de tipificação, agora é torcer para que tenham continuidade e que contagiem as empresas que ainda não experimentaram a premiação como técnica para atrair os melhores fornecedores de gado. As empresas deveriam planejar muito bem como vão classificar e premiar (classificar e atribuir prêmios e deságios, ou seja, criar preços diferenciados é o que se pode chamar de tipificação) antes de começar, para que não interrompam o processo algum tempo depois, desestimulando os fornecedores de gado que acreditaram na proposta.
Scot Consultoria: Qual a sua opinião a respeito da criação de programas específicos de classificação e bonificação de carcaças (cada frigorífico com o seu), ao invés de um programa nacional, que nunca sai do papel?
Prof. Pedro Felício: Começando a responder pelo final da pergunta, um programa oficial administrado pelo Ministério da Agricultura, como se faz na América do Norte e União Européia, não sai do papel porque a diretoria do DIPOA (Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal) não entende que tudo que é preciso fazer, no momento, é oferecer os padrões para classificação, certificar cursos de formação de tipificadores, e auditar o trabalho de empresas terceirizadas que já estão surgindo para prestar tal serviço nos frigoríficos. O foco do Ministério deveria se restringir às transações comerciais com gado e carcaças entre produtores e indústrias. É nesse ponto que dá “um nó na cabeça” do DIPOA, por não envolver varejo e consumidores no processo.
A idéia que precisa ser assimilada, e já tentamos passar isso ao atual diretor nos últimos três anos - a Instrução Normativa n.9, do ministro Roberto Rodrigues, é de maio de 2004 - , é fazer de tudo para implantar a classificação com base em critérios mínimos já definidos na IN 9, somente isto, o restante é o mercado que faz.
É bom explicar que o DIPOA faria a supervisão do sistema de classificação, mas quem tipifica, ou seja, diferencia preços, são as empresas, demonstrando o que lhes parecem ser as melhores carcaças. O Ministério jamais diria o que é melhor, apenas classificaria, diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos, onde o USDA (Departamento de Agricultura) diz que carcaças “Choice” são melhores do que as “Select” e estas melhores do que “Standard”, em termos de qualidade da carne, que vai chegar identificada ao consumidor.
Isto é assim num sistema criado nos anos 20 do século passado, e devido à força da tradição não se consegue mudar, mas hoje é muito diferente, não se pode fazer a mesma coisa atualmente. Agora, já que o ministério não consegue entender isso e imaginar que a diferenciação ao consumidor será feita posteriormente, o importante é que as empresas não se sintam acanhadas de adotarem sistemas semelhantes e até iguais de classificação aos melhores já existentes, porque futuramente teremos mesmo que unificar critérios de classificação, digo critérios, não política de preços.
A unificação será necessária para evitar confundir a cabeça dos fornecedores de gado.
Scot Consultoria: Qualidade de processos (rastreabilidade, sanidade, bem-estar animal...) ou qualidade de produto (sabor, maciez, padrão...). O que é mais importante para a conquista e, depois, para a manutenção de mercados no exterior?
Prof. Pedro Felício: De certo modo eu respondi a esta pergunta quando disse que primeiro vem a qualidade higiênico-sanitária e, claro, o que eu costumo chamar de novos conceitos de qualidade, que envolvem rastreabilidade, bem-estar animal, combate ao desmatamento, etc., depois vem a conformidade, e em seguida, ou até simultaneamente pode vir a qualidade funcional, isto é, a qualidade percebida e, melhor ainda, se pudermos saber qual é a qualidade desejada pelos consumidores.
O Brasil parece se preocupar muito mais em ter ótimas condições higiênico-sanitárias para as vendas no mercado externo do que no interno. Eu digo “parece” porque não quero gastar meu tempo para provar nada a quem se considerar ofendido, mas há muito tempo não vejo um ministro ou secretário de governo demonstrar qualquer preocupação com o que acontece de errado na obtenção higiênica da carne e do leite, não só no tocante à falta de inspeção, mas na inspeção de fachada, aquela que põe uma chancela oficial em alimento não inspecionado obtido em instalações pouco higiênicas, esta chega a ser pior do que a ausência de inspeção, porque ilude o consumidor.
Lembram-se do que disse o ministro quando houve a fraude do leite há bem pouco tempo em Minas Gerais? Disse que ia acabar com a inspeção permanente nos laticínios, não foi? Omissões assim vão minando aos poucos a confiança em ministérios e secretarias de agricultura, ensejando a criação de outros órgãos de regulação e controle que coloquem a saúde do consumidor em primeiro lugar.
Scot Consultoria: E para o nosso mercado interno: o que importa é preço ou a qualidade já começa a ser questionada?
Prof. Pedro Felício: Ao desativar o MESA – Ministério Extraordinário da Segurança Alimentar, e incorporar o Fome Zero ao Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, o primeiro governo Lula perdeu a grande oportunidade de transformá-lo no Ministério dos Alimentos, que cuidaria de Segurança Alimentar (garantia de acesso da população aos alimentos) e de Alimento Seguro (garantia de inocuidade dos alimentos). Acho que isto nem foi cogitado, estava só na minha cabeça.
O Brasil teria, com isto, passado ao resto do mundo uma mensagem de seriedade na maneira como cuida da qualidade dos alimentos que comercializa interna e externamente, e da disponibilidade destes para os brasileiros. É muito diferente da criação de um ministério da pesca para demonstrar que os recursos pesqueiros são importantes, porque se trata de produção, então, o certo é que fosse para a pasta da agricultura.
A humanidade se preocupa primeiro em produzir o bastante para alimentar as populações, depois em produzir da maneira mais eficiente possível, e só então passa a investir em melhoria de qualidade. Dessas fases distintas, que ocorrem em momentos diferentes nas diversas regiões do mundo, as duas primeiras podem ser muito bem administradas por ministérios de agricultura, mas a última, a da qualidade, requer órgãos muito mais direcionados e com uma forte vinculação com a saúde dos consumidores.
É uma pena que eu não tenha conseguido contagiar, à época, com a idéia, alguma figura política importante, mas, também, quem poderia imaginar que o MESA teria uma vida tão curta e que o Fome Zero se transformaria num programa de bolsas para famílias de baixa renda - com três outros programas igualmente importantes, segundo o governo federal.
Scot Consultoria: Última pergunta. Sabemos que, historicamente, a carne brasileira sempre foi competitiva em preço. Essa vantagem está se perdendo em função da valorização da arroba (em dólares), que hoje é uma das mais “caras” do mundo, à frente de competidores como Austrália e Uruguai, por exemplo. Nossa cadeia produtiva está preparada para lidar com essa nova realidade de mercado, ou seja, a carne brasileira tem outras “qualidades” além do preço baixo?
Prof. Pedro Felício: Concordo que o diferencial de preços tem sido um fator da maior importância, mas os atuais refletem uma situação de menor disponibilidade, porque abatemos gado demais nos últimos quatro anos e, agora, falta carne a ponto de causar tamanha elevação em dólares. Como também faltam fornecedores no mercado internacional, podemos reajustar os preços da carne, substituir a bovina no mercado doméstico por frango e carne suína e continuar exportando. Logo virá a recuperação dos rebanhos e o restabelecimento dos volumes de abate.
Não é isso que me preocupa, mas sim o grau de concentração dos frigoríficos em meia dúzia de grandes companhias. É interessante recordar o que aconteceu nos Estados Unidos. Perto de 1920, as cinco maiores companhias controlavam 55% do mercado. Após uma série de ações do governo federal, o truste foi vencido, não só o da carne, mas também o do açúcar, do aço e do tabaco, e por muitos anos, os agricultores e pecuaristas puderam negociar livremente. Em 1970, as quatro maiores empresas tinham apenas 21% do mercado. Mas aí o governo descuidou e as quatro grandes da carne – Tyson, Swift que agora pertence à JBS, a Excel e a National Beef – chegaram a controlar 84% do mercado em 2006.
Agora, junte-se uma concentração como esta ao que eu disse há pouco sobre o confinamento no modelo americano e quem estiver nos lendo perceberá o risco, para os pecuaristas, que virá quando as companhias frigoríficas estiverem confinando ou contratando a produção de gado confinado para o suprimento próprio; será como criar frangos para as integradoras, não é? Seria até interessante estimar quantos centavos por real de carne vendida hoje, nos supermercados, vai para os pecuaristas, e repetir a conta depois de 10 e 20 anos. O resultado poderá ser surpreendente para muitos criadores de pequeno e médio porte que nem se deram conta e já estarão fora do negócio. Pode ser até inevitável, mas se tiverem consciência do que irá ocorrer talvez encontrem uma saída honrosa, sem traumas.
Se me permitirem deixar uma mensagem final, eu gostaria muito que o governo federal, via BNDES, que até hoje patrocinou a concentração dos frigoríficos, criasse um programa de revitalização dos frigoríficos que não estão entre os “big five”, aplicando um percentual, a fundo perdido, no fortalecimento do Serviço de Inspeção Federal. Seria uma ação antitruste e, ao mesmo tempo, sanitária da maior importância.