Jogi Humberto Oshiai, por ele mesmo
Sou neto de imigrante japonês agricultor e pecuarista, filho de engenheiro agrônomo e ex-pecuarista de Presidente Prudente (SP) e defendo os interesses do setor de agronegócios junto à União Européia, em Bruxelas, com base na minha formação acadêmica (pós-gradução em Comércio Internacional e mestrado em Política Internacional na Universidade Livre de Bruxelas e MBA na “Solvay Business School”) e na minha experiência pessoal e profissional acumulada na capital da União Européia ao longo dos últimos dois decênios.
Atualmente sou Diretor para o Comércio da América Latina junto à União Européia do escritório de advogados europeus “O’Connor and Company” (www.oconnor.be), em Bruxelas, especializado em legislação comunitária, mas também em legislações nacionais e internacionais sobre alimentos, inclusive aquelas no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) e do Codex Alimentarius. Atuo nas áreas em que “O’Connor and Company” possui ampla experiência, sobre políticas agrícolas e alimentares, com particular ênfase em temas comerciais e regulatórios.
Sou, igualmente, “Special Adviser” para a América Latina da empresa de “FIPRA” (www.fipra.com), sediada em Bruxelas, especializada em “Public Affairs” e com escritórios em vinte sete capitais dos Estados-Membros da União Européia, com vistas a melhor representar e defender os interesses dos nossos clientes, inclusive junto às referidas capitais e não somente em Bruxelas.
Para melhor atender os interesses dos exportadores brasileiros nos temas emergentes (energia, crédito de carbono e desenvolvimento sustentável) aceitei recentemente o convite para assumir a função de “Adviser of the Board” da “33 Asset Management” do “Grupo Nidera” (www.nidera.com), dos Países-Baixos, que já está colaborando com as principais indústrias de carne bovina do Brasil em função do conhecimento técnico e da experiência de seus profissionais internacionais nos temas ainda pouco conhecidos pelo setor (e.g. - indústria e confinamento, etc.) no Brasil e de considerável interesse dos investidores internacionais e dos consumidores de países desenvolvidos.
Fui assessor em Assuntos Econômicos e Comerciais da Missão do Brasil junto à Comunidade Européia, em Bruxelas, até março de 2006. Iniciei minha carreira profissional na Missão sob a chefia do saudoso Senhor Embaixador, Professor Celso Furtado. "
Scot Consultoria: Como o senhor avalia as dificuldades brasileiras em exportar carne “in natura” para a União Européia? Nossos clientes são intransigentes ou o Brasil realmente tem falhado em atendê-los?
Jogi Humberto Oshiai: Acredito que grande parte dos leitores da Scot Consultoria acompanharam nos últimos dois anos minhas entrevistas em revistas, jornais, boletins “on line” especializados do setor e, igualmente, denúncias feitas nos grandes jornais brasileiros sobre a maneira como o Brasil estava conduzindo os temas relacionados às recomendações feitas pela União Européia no que se refere às condições exigidas para a importação comunitária de carne bovina
in natura proveniente dos estados habilitados do Brasil.
Recordo que as diversas missões comunitárias de inspeção e as auditorias do Serviço Alimentar e Veterinário (FVO) da DG SANCO, que se deslocaram ao Brasil nos últimos anos, repetiram inúmeras vezes nos seus relatórios as mesmas deficiências na área da rastreabilidade, relacionadas ao SISBOV, e defesa animal. O Brasil não soube corrigir essas lacunas por inúmeras razões, inclusive por ter estado muito mal representado nos últimos dois anos em Bruxelas pelo Setor Agrícola da Missão do Brasil junto à UE, e por isso foi objeto de medidas comunitárias restritivas em janeiro de 2008 que acabaram inviabilizando as exportações de carne
in natura para o mercado comunitário (vinte e sete países-membros e quinhentos milhões de habitantes). Vale salientar que as referidas medidas são únicas em termos de requisitos exigidos aos países da América Latina e que denunciam claramente que as medidas “implementadas” pelo Brasil até a missão comunitária (FVO) de novembro de 2007 não satisfizeram os europeus e, naquele período, tampouco o nosso atual Ministro da Agricultura, que afirmou publicamente a existência de “fraude” no sistema de rastreabilidade brasileiro.
Nossos clientes – os importadores europeus – são nossos aliados, ao contrário dos produtores europeus que são nossos concorrentes no mercado comunitário e também em terceiros mercados. Os produtores são extremamente organizados seja, a nível nacional ou no âmbito de Associações, Federações e Confederações européias, que dispõem de recursos financeiros e humanos com vistas a utilizar inclusive as falhas institucionais brasileiras para impor sua intransigência junto à Comissão Européia e ao Parlamento Europeu. Isso se faz por meio de
lobby sofisticado, como o utilizado contra a carne bovina
in natura brasileira que tinha acesso ao mercado comunitário sem atender completamente às exigências da UE.
Espero que a vinda do novo Embaixador brasileiro junto à UE substitua o diplomata responsável pelas falhas do setor agrícola da Missão para que, novamente, junto com o SDA/MAPA e com o setor privado brasileiro, possa defender os interesses do setor de agronegócios brasileiro junto à UE e combater o
lobby dos concorrentes europeus a exemplo do que foi realizado nas Chefias dos Embaixadores Graça Lima, Hugueney, Dauster e Celso Furtado.
Scot Consultoria: Quais são os principais problemas que os europeus apontam na carne brasileira? Em outras palavras, qual a razão dessa exigência adicional em se auditar todas as fazendas? Por que o Sisbov não conseguiu atendê-los?
Jogi Humberto Oshiai: Caso a memória não me falhe o SISBOV foi criado em 2002 e foi modificado inúmeras vezes e inclusive recentemente transferido justamente da Secretária de Produção para a Secretaria de Defesa Animal. Apesar dos esforços do governo e do setor privado, ainda se discute tecnicamente e politicamente a terceira versão. Lembro comentários feitos pelos técnicos comunitários simpatizantes do Brasil (e.g. - Dr. Antonio Rosinha) que não era viável para qualquer sistema de rastreabilidade ter sistematicamente a sua metodologia e procedimentos alterados de modo a dificultar sempre a sua implementação e, sobretudo, realizar uma avaliação ponderada e criteriosa em decorrência da adaptação que teria que ser feita a cada modificação na “cultura” da cadeia produtiva.
Vale ressaltar que durante anos, por um motivo ou outro, as certificadoras foram mal orientadas em termos da legislação que estabelecia procedimentos de atuação. Os critérios e requisitos para a sua criação e execução das ações eram pouco claros e deixavam margem suficiente para várias opções muitas vezes mal utilizadas nas fazendas e até nos frigoríficos habilitados à exportação. O MAPA não exerceu a sua função de autoridade competente e assim os controles e auditorias levianos de inúmeras certificadoras contribuíram para levar o inteiro sistema ao caos que todos do setor conhecemos. Sentimos diretamente na pele a perda financeira causada pelas negligências.
Durante vários anos as missões da FVO que visitaram o Brasil foram encontrando as mesmas anomalias e deficiências apesar de, no fim de cada missão, terem relatado ao MAPA os pontos negativos e, em seguida, a UE ter encaminhado relatório indicando claramente todas as deficiências que necessitavam ser corrigidas. Recordo que as autoridades competentes brasileiras a cada encontro bilateral de alto nível, inclusive de Ministros brasileiros e Comissários europeus (equivalente a Ministro no Brasil), se comprometiam a corrigir as referidas anomalias e deficiências.
Não atendendo às recomendações oriundas das missões da FVO, o Brasil acabou obtendo um resultado desastroso de descontrole do processo levando ao aparecimento de situações de fraudes graves e evidentes detectadas na missão do FVO de novembro de 2007. Em face dessa situação, as conseqüências não podiam ser outras que não as restrições então impostas pela UE, as quais eu já havia anunciado há muito tempo e que infelizmente eram mal interpretadas, seja pelo governo ou até mesmo por parte do setor privado, que tinha como objetivo sempre o lucro imediato e não o desenvolvimento das exportações de forma sustentável.
A UE deixou de acreditar no trabalho feito pelas certificadoras e no papel de controle e auditoria realizados pelo Ministério da Agricultura. Acredito que graças ao trabalho realizado atualmente pelo Secretário Inácio Kroetz diretamente com a DG Sanco, sem a interferência negativa do setor agrícola da Missão do Brasil junto à UE, as restrições poderão um dia desaparecer em função de trabalho árduo para demonstrar à União Européia que o SISBOV é credível. Isso só será possível caso o Brasil consiga implementar o “dever de casa” de modo correto do ponto de vista técnico.
Scot Consultoria: Em sua opinião, quem sofre mais como essa pendenga: os europeus, em função do déficit de carne e do aumento dos preços, ou o Brasil, que deixa de atender um dos mercados que melhor remunera?
Jogi Humberto Oshiai: A resposta será curta uma vez que o tema já foi amplamente debatido no Brasil. Reafirmo que o Brasil perdeu ainda que temporariamente um importante mercado com grandes potencialidades de aumento, sobretudo em relação ao preço. Como eu já havia antecipado, os importadores europeus podem sempre recorrer a outros mercados, até mesmo na América Latina em países vizinhos do Brasil, ou ainda em outros países exportadores em que a indústria brasileira já está presente. O mercado se acomoda sempre e a teoria que eu humildemente sempre fui contra de que “a UE não proibiria as importações de carne bovina in natura oriunda do Brasil” já foi devidamente demolida. Vale lembrar que na UE ainda prevalece a frase criada pelo Comissário Byrne “from the farm to the fork” (da fazenda para o garfo).
Vale assinalar que, recentemente, com a consultoria de excelentes técnicos do setor privado (modéstia à parte, meus sócios em temas sanitários!) até mesmo o Paraguai conseguiu levantar a suspensão para novamente ter acesso ao mercado comunitário e, assim, pelo menos uma indústria de ponta brasileira passará a se beneficiar das exportações de carne
in natura para a UE a partir de um país relativamente pequeno, mas que soube atender minimamente as exigências comunitárias relativas à rastreabilidade para ter acesso ao mercado que melhor remunera os cortes nobres.
Scot Consultoria: Como o senhor avalia a teoria de que o mercado europeu já não é tão importante, e que o Brasil deveria concentrar o foco nas exportações para países ou blocos emergentes?
Jogi Humberto Oshiai: A Europa constitui um mercado seguro em termos de projeções e expectativas de consumo a médio e longo prazo. Os mercados emergentes devem ser explorados, mas certamente não terão capacidade em médio prazo de absorver todo o potencial brasileiro em termos de exportação de carne
in natura, especialmente os cortes nobres. Acredito que em uma economia globalizada, as exportações devem ser diversificadas em termos de destino e isso as indústrias brasileiras já entenderam e muito bem. Devo salientar, contudo, que faz muito bem, inclusive ao ego de qualquer exportador brasileiro, o fato de observar o seu produto ser embarcado para a UE !
Scot Consultoria: A União Européia pode ser considerada uma porta de acesso a outros mercados? Quais?
Jogi Humberto Oshiai: A União Européia é o único bloco/país importador que tem um Serviço de Inspeções (FVO) devidamente organizado, capaz de executar missões de inspeção em todos os países exportadores de carne
in natura para o seu mercado. Desta forma, o resultado de suas inspeções, publicadas na página WEB da DG SANCO, é com certeza uma fonte de informação para outros países que não realizam ações desse tipo e que certamente utilizam as informações disponíveis para avaliar o risco das importações de carne. O exemplo real da UE como ponto de referência para temas sanitários e fitossanitários foi o efeito que denominei de “bola de neve”, primeiramente adotado pela imprensa brasileira no segundo semestre de 2005, quando foi detectado o foco de febre aftosa no Estado do Mato Grosso do Sul e, novamente, durante a maior crise da carne brasileira em janeiro de 2008. Suponho que todos se recordam a quantidade considerável de países importadores de carne do Brasil que fecharam os seus mercados para o nosso produto, ainda que de excelente qualidade, seguindo a decisão da UE.
Scot Consultoria: A questão sócio-ambiental pode vir a se tornar uma barreira não tarifária importante no acesso à União Européia? Como o Brasil está posicionado frente a essa questão?
Jogi Humberto Oshiai: A questão sócio-ambiental e a de bem-estar animal também deveriam ser motivos de estudos técnicos e não políticos no Brasil. Valeria a pena iniciar a minha resposta pelo segundo tema, uma vez que o MAPA tem tomado iniciativas até mesmo a nível internacional no que se refere ao bem estar animal (e.g. – conferência internacional organizada pela Comissão Européia, em Bruxelas, e mais recentemente no Congresso Internacional de Carne na África do Sul). A meu ver, o tema em apreço, assim como o da rastreabilidade, deveria ser de responsabilidade da Secretária de Defesa Animal do MAPA ao invés da Secretária de Produção, especialmente por ter a SDA técnicos habilitados a acompanhar as missões de inspeções da UE, OIE e de outros países importadores de carne do Brasil, que serão futuramente encarregados de realizar inspeções relativas ao bem estar animal também. Vale também lembrar que “if you have promised you have to deliver it” (se você prometer, você tem que entregar). Assim, as informações fornecidas atualmente pelo MAPA aos parceiros comerciais em foros internacionais pode acarretar ao setor produtor/exportador custos adicionais para implementar sistema que ainda não é exigido pelos países importadores, e que pode futuramente acabar nos prejudicando por ter estabelecido exigências desnecessárias e que possivelmente não serão devidamente implementadas.
Tenho sempre insistido junto aos ex-colegas do governo estadual e federal, assim como aos colegas e amigos do setor privado, que temos que levar sempre em consideração a dimensão territorial do Brasil e as “manias quase que culturais” ainda existentes no setor produtor/exportador antes de tentar aumentar o paradigma sanitário, além do mínimo necessário, para atender as exigências dos países importadores e, sobretudo, não criar ou tentar implementar sistemas ou leis que não seremos capazes de dar garantias suficientes aos nossos parceiros comerciais.
No que se refere ao primeiro tema eu preferiria me pronunciar sobre o desenvolvimento sustentável não do ponto de vista de barreira não tarifária, mas como uma necessidade real para o benefício do setor e do Brasil. Acredito que muitos dos leitores têm conhecimento de que as indústrias do setor, as sérias, assim como proprietários de confinamento, estão criando no seio de suas empresas setores que se ocupam somente deste tema, que gera receitas além de evitar poluição desnecessária aos nossos rios por meio de tratamento de lagoa de efluentes e também ao clima por meio de redução de emissão de CO2. Vale ressaltar que, atualmente, os investidores brasileiros ou estrangeiros que investem no setor se preocupam com a sanidade do rebanho brasileiro e, igualmente, com o desenvolvimento sustentável. Desta forma, uma eventual barreira não tarifária passa a ser um simples detalhe, uma vez que no setor se ganha dinheiro também com “papéis”. Assim, o desenvolvimento sustentável hoje faz parte da realidade do empresário brasileiro sério, assim como de discursos de Mandelson, Lamy e Cia Ltda que ditam de certa forma as regras do comércio internacional.
Scot Consultoria: Por fim, como o senhor enxerga, num futuro próximo, o relacionamento comercial entre Brasil e União Européia, no que diz respeito à carne bovina? Os entendimentos estão caminhando bem? Voltaremos a exportar volumes significativos de carne bovina para a Europa?
Jogi Humberto Oshiai: Conforme já mencionei anteriormente, a situação criada de obrigar o Governo brasileiro a fazer as vistorias nas fazendas exportadoras de carne manter-se-á até que o Brasil reconquiste a credibilidade junto à UE em relação ao seu sistema de rastreabilidade, que pode até ser o SISBOV. Se o trabalho executado hoje pelo MAPA não for feito com sustentabilidade, como tem procurado fazer o Secretário Inácio Kroetz, poderemos novamente viver situações desastrosas semelhantes ao do passado recente, uma vez que a FVO continuará a fazer inspeções no Brasil. Acredito termos todos aprendido a lição de que não se pode esconder as deficiências existentes simplesmente com uma “peneira”.
A UE tem adotado as deliberações da OIE, instituição ainda amplamente discutida, e assim o Comitê Permanente da UE deve discutir a proposta da Comissão que propõe levantar a suspensão do Estado do Mato Grosso do Sul e aprovar as áreas não habilitadas dos Estados do Mato Grosso e de Minas Gerais. Dessa forma teremos oportunidade de colocar as indústrias, inclusive do Estado de São Paulo, a exportar, desde que os pecuaristas dos referidos Estados reconheçam o sistema que está sendo implementado pelo governo e que possam também ver ganhos reais para adicionar os custos da rastreabilidade no seu custo de produção. Vale ressaltar que o total atual de 364 propriedades habilitadas pela UE está bem longe do número necessário para que as indústrias do setor possam retomar o volume de abate desejado para atingir o volume anterior de exportação para a UE.
Como é de conhecimento dos colaboradores deste excelente veículo de comunicação do setor, acredito também ser necessário recordar as indústrias brasileiras exportadoras de carne, a ABIEC e a nova ABRAFRIGO, assim como os governos de estados brasileiros, que muitas vezes no Brasil se tenta ainda “inventar a roda”, quando na verdade já existe no mercado profissionais, sobretudo em Bruxelas, que podem monitorar, realizar o trabalho de “public affairs” e defender os interesses do setor junto à UE para prevenir contra-tempos e também para abrir acesso ao mercado comunitário, inclusive a novas áreas ainda não habilitadas, novos Estados, estabelecimentos e novos produtos.
Finalmente, vale ressaltar que a UE continua a insistir na sua agenda política para melhorar as condições climáticas no mundo, ao ponto de ter cogitado a suspensão de tarifas (ou seja, 0%) para determinadas indústrias relacionadas a energias não poluentes e energias renováveis, que tenham específicas conexões com mudanças climáticas.
Como acredito plenamente nas minhas convicções, valeria a pena ainda reiterar que o Brasil deveria aproveitar o novo enfoque comunitário para continuar a investir na sanidade animal e também utilizar novas formas de energia nas suas indústrias do setor, para agregar o valor “green” (verde), equivalente a não poluente. Devemos, portanto, ter o devido cuidado com a política energética, agrícola e industrial, especialmente nos temas relacionados ao agronegócio, de forma a agregar valor aos produtos brasileiros com vistas a aumentar o acesso ao mercado comunitário e, igualmente, para melhorar as condições sociais e do meio ambiente especialmente no Brasil.
A responsabilidade para atingir este objetivo é de todos e assim temos que continuar lutando para manter a posição de primeiro exportador de carne bovina do mundo, não somente em volume, mas em qualidade e preço, o que só será possível por meio de credibilidade. E isso se inicia com “rastreabilidade”.