Foto: Rodrigo Alvacapa - Embrapa
Cacilda Borges do Valle é formada em agronomia pela Universidade de São Paulo-ESALQ (1973), possui mestrado em Fisiologia de Pastagens na Iowa State University of Science and Technology (1977) e doutorado em Melhoramento de Plantas na University of Illinois (1986).
Atualmente é pesquisadora da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) gado de corte e trabalha em Melhoramento de Plantas Forrageiras e desenvolvimento de novas cultivares de Braquiária.
Scot Consultoria: A Senhora poderia iniciar essa entrevista contando um pouco sobre a sua história e a sua relação com a pesquisa científica na Embrapa?
Cacilda Borges: Sou engenheira agrônoma, formada pela ESALQ e logo no início da minha carreira profissional, em 1975, fui convidada para fazer parte da EMBRAPA, que naquela época ainda estava sendo criada, não tinha nem identidade própria e a ideia era justamente que os contratados recém-formados fossem treinados para trabalhar com ciência e tecnologia, que ainda era um ramo muito deficiente no Brasil. Na época éramos ainda um grande importador de alimentos, diferentemente de hoje.
O objetivo era então formar jovens criadores e cientistas onde tivesse centro de referência, então vários de nós fomos mandados para o exterior, onde existia excelência nessas áreas que precisavam ser desenvolvidas aqui no Brasil, por que aqui não tinha nem programa de doutoramento em agronomia. Em 1977 eu já estava nos Estados Unidos iniciando meu mestrado com pesquisas focadas em fisiologia de pastagens.
No retorno, essa unidade da EMBRAPA, que é o centro nacional de pesquisas com gado de corte, já havia sido fundada e quando eu cheguei já de imediato fui incorporada ao programa de produção de forragens visando, principalmente, o período seco, porque essa era a época crítica de manutenção de animais em pastagens. Então já começamos a trabalhar com o problema do boi sanfona, que é aquele animal que ganha peso nas águas e perde nas secas por falta de pastagens.
Sendo assim, iniciamos as pesquisas com conservação de plantas forrageiras, manejo de pastagens e então finalmente no meu doutorado eu comecei os estudos com melhoramento genético de plantas.
Nos Estados Unidos eu já iniciei as pesquisas com braquiárias para tentar conhecer a biologia básica dessas plantas, porque não era possível usar o que já existia de tecnologia de melhoramento para os capins africanos, o que tínhamos de conhecimento era todo focado em capins temperados. O capim africano é apomítico, ou seja, não tem sexo e por isso tivemos que desvendar como trabalhar com eles.
Eu já sabia que o Brasil começaria a importar uma grande coleção de braquiárias vindas da África, e que, possivelmente, seria uma das responsáveis por fazer esse tipo de trabalho assim que voltasse do doutorado. O primeiro passo foi fazer uma avaliação muito criteriosa dessa coleção, definindo o que era bom para podermos então fazer o cruzamento e desenvolver um híbrido ainda melhor. Essa avaliação deu origem as cultivares Xaraés, Paiaguás, Piatã, etc... Os materiais dessas cultivares que foram liberadas primeiro começaram a ser avaliados a partir de 1978, ano que eu estava fazendo os primeiros cruzamentos.
O híbrido que lançamos esse ano, o Ipyporã, que em guarani significa novo começo, é proveniente de um cruzamento que fizemos na Embrapa gado de corte em 1992. O Ipyporã ficou “na prateleira” por uns bons anos, isso porque tínhamos poucas pessoas para fazer as experiências, e os ensaios de pastejo, mas finalmente chegou a vez dele, e essa cultivar se mostrou extremamente eficaz.
Scot Consultoria: Quais são as principais diferenças dos programas de melhoramento genético de plantas no passado em relação ao que vemos hoje? Os objetivos e os focos das pesquisas mudaram?
Cacilda Borges: Quando começamos, nos tínhamos uma carência de opções para plantar. Sempre falávamos que o pecuarista tinha que diversificar pastagens, porque na época o Brasil era um grande “maranduzal”, só plantava-se Marandu e hoje em dia o portfólio disponível de braquiárias e Panicuns é tão grande que não estamos mais preocupados em diversificação, em compensação a demanda por materiais, como a Ipyporã vem chegando.
Como, por exemplo, a demanda por plantas mais resistentes. A grande diferença entre a Marandu e a Ipyporã é que a Ipyporã tem alta resistência à cigarrinha da cana-de-açúcar, característica que o capim Marandu não tem. Então em muitos locais que o Marandu está morrendo por conta do ataque dessa cigarrinha maior, a Ipyporã está aguentando, então ela já possui essa resistência. Que é um nicho diferenciado.
Então, o programa de melhoramento vai focar na demanda vigente, nossos objetivos atuais são, por exemplo, diminuir a emissão de gases metano, diversificar pastagens com animais de maior demanda nutricional, e procurar uma fonte de resistência ao encharcamento do solo.
Em vários locais está ocorrendo a morte do capim Marandu por conta de má drenagem de solo e ainda não temos outra opção para indicar que tenha qualidade de suporte e capacidade nutricional satisfatória.
Dependendo de qual braço do estudo de melhoramento de braquiárias que estivermos olhando, o objetivo seja diferente. Para Brachiaria humidícola, procuramos melhor produção de semente e maior valor nutritivo, para Brachiaria decumbens queremos material com resistência à cigarrinha, nós estamos fazendo melhoramento para B. decumbens também, porque por enquanto somente uma cultivar é disponível para comércio, que é a braquiarinha. E da Brachiaria brizantha, que já temos um portfólio mais abrangente e interessante, buscaremos agora plantas com resistência à encharcamento, mas não antes de 8-10 anos teremos híbridos para oferecer para o comércio.
Todo processo de melhoramento é muito longo, trabalhoso e requer muita logística. Temos que começar com os programas de cruzamento, depois os testes de progênie, a multiplicação de sementes, posteriormente o teste de fertilidade, de resistência à insetos, à doenças, depois passamos para uma série de ensaios regionais e finalmente os testes de pastejo durante dois anos.
Quando começamos as pesquisas fazíamos cruzamentos extremamente exploratórios, o que chamamos de “tiro no escuro”, cruzávamos e esperávamos o resultado. Hoje em dia, como já temos um melhoramento da população sexual, buscamos as melhores mães, que tenham em seu código genético características como resistência a cigarrinha, boa arquitetura de planta, maior proporção folha-colmo, e grande produção de sementes. Essas mães superiores nós cruzamos com os nossos melhores apomíticos.
Já estamos em uma fase que cruzamos plantas superiores, almejando resultados ainda mais superiores geneticamente. Nosso foco já é mais racional, menos empírico e mais focado na demanda.
Scot Consultoria: Quais são os pré-requisitos e as condições que a Senhora analisa quando procura desenvolver uma nova cultivar de uma planta forrageira? Resistência a pragas, produtividade, adequação climática? Há um a ser destacado?
Cacilda Borges: Depende muito do nosso foco da pesquisa. Por exemplo, para Brachiaria B. decumbens não queremos que ela perca a rusticidade e queremos que ela seja mais resistente à cigarrinha, então o primeiro teste para os híbridos de B. decumbens é o de resistência à cigarrinha, essa é a primeira peneira, depois disso é que começamos a analisar os outros fatores.
No caso de híbridos interespecíficos, como o capim Ipyporã, que cruzamos a Brachiaria ruziziensis com Brachiaria brizantha procurávamos um capim com resistência a cigarrinhas e de alto valor nutritivo.
O objetivo da demanda é o que define os pré-requisitos da pesquisa.
Scot Consultoria: A maioria dos pastos brasileiros ainda é ocupada por monocultura ou o braquiarão já perdeu bastante espaço? A senhora aconselha que o produtor tenha diversas alternativas de pasto em sua fazenda, por quê?
Cacilda Borges: Não vemos mais a mesma quantidade de propriedades com monoculturas como víamos antigamente. Há 20 anos já estamos falando do perigo que o pecuarista enfrenta ao ter a pastagem composta por uma única cultivar, toda produção animal fica em alto risco, se acontecer uma virose, ou alguma infestação de insetos, por exemplo, não tem onde realocar o gado, ou o pecuarista vende ou deixa os animais perderem peso e morrerem de fome.
Hoje já percebemos que o pecuarista está mais progressista, mais sensibilizado a integrar pastagens com lavouras, mas em regiões como Tocantins, Goiás e até Mato Grosso do Sul ainda observamos fazendas que tem monocultura de pastagens.
Aconselhamos veementemente que o pecuarista tenha alternativas de pasto em sua fazenda, eu costumo fazer a comparação com o restaurante a quilo, ninguém gosta de ter somente uma opção de comida, e fornecer somente um tipo de alimento, para animais de categorias específicas que possuem diferentes demandas nutricionais, não é uma boa estratégia, ainda mais se houver algum tipo de contratempo que prejudique a produção.
Mas entendemos que grande parte desse problema está relacionada à mão de obra, é mais fácil para o capataz manejar o gado quando existe somente um tipo de pasto, agora quando é o dono da fazenda que cuida e conhece os da propriedade ele automaticamente se sensibiliza.
Scot Consultoria: Quais são os primeiros passos que o produtor deve tomar para escolher o pasto da fazenda? Cada categoria animal precisa de um tipo específico de pasto? Por quê? Qual tipo de pasto ideal para cada categoria?
Cacilda Borges: Já que estamos falando de novidades, fizemos o lançamento de um aplicativo chamado Pasto Certo, é um aplicativo para celular, onde incluímos dez variedades de Braquiária e seis Panicuns com 107 características descritas.
O aplicativo tem as características morfológicas e mostra como você diferencia uma forragem de outra, tem também todas as informações nutricionais e produtivas, como por exemplo, a produção de matérias seca nas secas, nas águas, a quantidade de proteína e energia, qual a capacidade de suporte, manejo necessário, etc...
Na próxima versão do aplicativo pretendemos desenvolver uma atualização que possibilite que o pecuarista informe os dados de sua propriedade e seus objetivos e em seguida o aplicativo sugere as melhores possibilidades de plantio. O aplicativo foi pensando para funcionar a favor do produtor.
Scot Consultoria: Depois dos lançamentos de cultivares como o Quenia, Zuri, chegou a vez do lançamento do híbrido Ipyporã, quais são as característica e as vantagens dessa planta Dra.? A senhora poderia citar o que as pesquisas vêm demonstrando quanto valores nutritivos, ganho diário, desempenho animal...
Cacilda Borges: A cultivar é resultado do cruzamento de Brachiaria ruziziensis com Brachiaria brizantha e reúne as melhores características de cada uma delas.
O capim Ypirorã demonstrou altíssimos valores nutritivos e resistência extrema à pragas, principalmente contra cigarrinha. Ele tem um hábito de crescimento bem baixo e quando rebrota, ele rebrota folha por folha, que é a parte da planta que o animal mais prefere e que tem maior digestibilidade.
Os estudos demonstraram que ele teve aproximadamente 3 pontos percentuais de proteína acima do Marandu e 5 pontos percentuais a mais de digestibilidade, mas isso é claro que depende muito da qualidade de solo que você está plantando.
Na comparação, em números diretos e absolutos, com o capim Marandu, BRS Ipyporã apresentou elevado valor nutritivo e ganho médio diário maior. Mas, como ela é mais “baixinha” do que a Marandu, ela proporciona uma capacidade de suporte menor fazendo com que sua taxa de lotação seja mais baixa quando comparada com o capim Marandu.
Mas no final das contas, os animais tiveram o ganho de peso médio diário maior, porque o híbrido tem mais qualidade nutricional, a taxa de digestibilidade é alta e consegue-se melhor performance no ganho médio diário. A taxa de lotação do Marandu é compensada pelo ganho de peso da Ipyporã.
Idealizamos que no capim Ipyporã os animais saiam com melhor acabamento de carcaça porque ganharam individualmente mais.
O estudo foi realizado com pastejo rotacionado, o que já não é muito comum para braquiária, normalmente as braquiárias são mais usadas em pastejo contínuo e os Panicuns em pastejo rotacionado, e mesmo assim o Ipyporã teve ótimo desempenho.
Por isso o recomendamos também para categorias animais mais exigentes como vacas em lactação e vacas no terço final de gestação.
No desenvolvimento da Ipyporã, usamos como mãe uma Brachiaria ruziziensis e como pai uma Brachiaria brizantha, ambas não são as cultivares comerciais. São plantas que tiramos da coleção de germoplasma. Essa recombinação é normalmente um tiro no escuro, é muito difícil estipular o resultado do cruzamento.
A fecundação aconteceu e dentro da família da Ipyporã nos tínhamos mais de 400 híbridos, então tínhamos uma variedade de características, mas desde o começo, no teste de progênie, houve ataque de cigarrinha e ela era a mais persistente, que sobrevivia e mantinha o aspecto folhoso. Estudamos o modo de reprodução e reservamos as sementes, na hora que tivemos a oportunidade nós as multiplicamos e fizemos os testes requeridos pelo MAPA para poder registrá-la e protegê-la.
A colheita está prevista para julho e a partir de setembro/outubro já teremos as sementes disponíveis para comercialização.
Scot Consultoria: Para o pecuarista que deseja plantá-la quais são as exigências de solo e as indicações de plantio?
Cacilda Borges: Ela é uma Brachiaria brizantha e, portanto, possui necessidades parecidas como as outras cultivares de sua família. É indicado o plantio em solos de média fertilidade ou solos recuperados, ela foi testada em solos de até 45,0% de argila e não demonstrou problema nenhum.
Todas as indicações estão contidas no comunicado técnico da EMBRAPA gado de corte com todos os detalhes de indicação de plantio.
Sempre recomendamos que o plantio seja feito na terra preparada e que a semente seja incorporada ao solo, a semente não pode ser deixada em cima da terra. Recomendamos de 2 a 3 cm de incorporação para poder ter uma formação mais rápida. E a partir de 60 – 80 dias de plantio já deve ser possível iniciar o pastejo.
Aconselhamos que o pastejo seja leve para permitir a formação completa do pasto e o aprofundamento de raízes. Mas depois o manejo já fica mais fácil do que o do Marandu. A altura de entrada é ao redor de 30 cm e a altura de saída na base de 15 cm. Se for pastejo contínuo entre 20 e 25cm. Sugerimos não deixar a planta ficar muito alta porque depois a proporção de colmo começa a ficar muito elevada o que prejudica o consumo do animal.
A adubação é a mesma que se faria para Marandu, saturação de base entre 35,0 e 40,0%, e pelo menos, fósforo sempre acima de 12 ppm, todas as indicações estão no comunicado técnico.
Scot Consultoria: É indicado o uso da Ipyporã em pastagens com integração lavoura pecuária?
No Brasil, temos milhões de hectares de pastagens degradadas que precisam ser recuperadas e quem adere a tecnologia de integração lavoura pecuária, mesmo que seja arrendando durante 3-4 anos para lavoura, não vai querer voltar a plantar qualquer tipo de cultivar no solo, eles já optarão por plantar cultivares de maior qualidade.
Ainda não testamos o uso da Ipyporã em ILP, mas pelas suas características de rebrota mais lenta, por ter maior proporção de folha no momento da rebrota e da vegetação, ele encaixa bem na ILP, além de ser muito fácil de queimá-lo com glifosato, ou seja, se você desejar usá-lo como pasto de inverno e depois quiser plantar soja novamente, ele é facilmente morto com o glifosato e tem menos touceira do que a própria Marandu.
Quando a pesquisa quanto ao uso da Ipyporã em ILP for finalizada, lançaremos outro comunicado técnico, mas estamos com boas perspectivas.
Scot Consultoria: E agora, quais são as novas linhas de pesquisa em torno das cultivares de Braquiária?
Cacilda Borges: Já estamos com alguns híbridos em pesquisas mais avançadas, começaremos o ensaio regional a partir do ano que vem, provavelmente, tanto para híbridos interespecíficos quanto para híbridos de Brachiaria B. decumbens, os materiais já foram enviados para serem testados no Distrito Federal e em São João Del Rey, dessa maneira já teremos resultados do desempenho desses híbridos no bioma de serrado e no bioma de mata atlântica. Foram enviados 20 tipos de híbridos para cada local e já estamos em fase de testes de sementes, possivelmente, se algum desses híbridos mostrar eficiência e superioridade já começaremos a fazer o ensaio regional a partir do ano que vem.
Continuamos fazendo os cruzamentos com materiais muito interessantes, já estamos implantando um bloco de pesquisa usando a Ipyorã como pai, para que os próximos híbridos continuem demonstrando resistência contra a cigarrinha.
A outra ideia é de começarmos a implementar também algumas outras biotecnologias para “andarmos mais rápido” no melhoramento. Por enquanto, a triagem para diferentes características ainda fazemos de forma “empírica” colocamos a planta no vaso, e fazemos testes de fertilidade, ou encharca ou infesta com cigarrinha, e a ideia é de começarmos a usar a genômica desses materiais.
Já estamos com o mapa genômico da B. humidícula muito avançado, o de B. decumbens ainda não está pronto, mas o objetivo é usarmos as biotécnicas como ferramenta para acelerar o processo de melhoramento genético de plantas.
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