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Scot Consultoria

Cultura e tendências globais em segurança alimentar

Entrevista com a Presidente do Grupo Food Design e da ONG IRSFD, Ellen Lopes

Terça-feira, 23 de agosto de 2022 - 08h00
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Ellen Lopes é Mestre e Doutora em Ciência dos Alimentos pela USP, especialista em Marketing Internacional de Alimentos pelo Cererul- Universidade de Zaragoza, especialista em Cultura de Segurança de Alimentos e Pós-Graduanda lato sensu em Gestão de Desenvolvimento Sustentável pela FGV & Universidade Mc Donald’s. É único membro representante da América Latina do TWG (Technical Working Group) de Food Safety Culture da GFSI (Global Food Safety Initiative) e expert em HACCP para a UNIDO – United Nations Industrial Development Organization pela International HACCP Alliance, USA, desde 2002. Possui atuação geográfica no Brasil, Alemanha, Argentina, Canadá, Colômbia, Chile, Costa Rica, Estados Unidos, Portugal, México, Moçambique, Nigéria e Singapura.

Foto: ShutterStock


Scot Consultoria: Como é desenvolvido o trabalho de Cultura de Segurança de Alimentos pela Food Design?  Por onde aqueles que querem aderir a esse programa devem começar?

Ellen Lopes: Antes de responder, vou me permitir explicar que a Cultura de Segurança de Alimentos, simplificadamente é: “um bicho de duas pernas: uma perna técnica e uma perna comportamental”. No passado nós técnicos achávamos que bastava trabalhar a “perna técnica”. Na prática de longos anos, tanto nós da Food Design como muitos pesquisadores que se debruçaram sobre esse assunto, constatamos haver um forte impacto da “perna comportamental”. Assim, na Food Design, buscamos um profissional para nos ajudar nessa parte comportamental.

Com essa parceria desenvolvemos a metodologia FD.360 que tem sólidas bases acadêmicas, é adaptada à realidade brasileira e foi validada em vários trabalhos práticos. Como ela funciona? Primeiramente realizamos uma sensibilização com a direção para que possam entender quais são os fatores que impactam o comportamento de segurança alimentar. Cabe à liderança estabelecer a segurança de alimentos como um valor inegociável e vivo na organização. De nada adianta ter um lindo quadro de Política de Segurança de Alimentos na parede, se essa política não for vivida por todos da organização, a começar pela direção.

A seguir vem o diagnóstico, que pode ser mais ou menos profundo. Quanto mais profundo, melhor o resultado. Assim como ocorre com auditorias técnicas, a contratação de trabalho especializado independente é importante para evitar distorções, decorrentes da falta de neutralidade e/ou experiência.  Mas claro que se a empresa não tiver condições de contratar um trabalho especializado pode realizar um autodiagnóstico, que é melhor que nada. O diagnóstico permite apontar as dimensões/fatores limitantes, bem como os pontos fortes a serem mantidos. Com esses dados construímos um plano estratégico de forma colaborativa com a equipe da empresa. Por que colaborativo? Porque há aspectos que só discutindo com a empresa, poderão ser viáveis, tanto em termos de conhecimentos, recursos humanos, materiais e de tempo. Dali adiante, é avaliar periodicamente os resultados, corrigir e melhorar continuamente.

Gostaria de alertar que não há uma “bala de prata”. Não existem soluções mágicas, como um treinamento espetacular capaz de mudar toda uma cultura. Não se consegue fazer evoluir uma Cultura de Segurança de Alimentos atuando isoladamente em uma única dimensão ou fator. Seu amadurecimento é um processo sistêmico, e há que se dar tempo ao tempo.

Scot Consultoria: Quais as diferenças entre segurança de alimento e food defense?

Ellen Lopes: Segurança de alimentos trata das práticas para prevenir e controlar contaminações acidentais, como bactérias patogênicas, micotoxinas produzidas por fungos, vírus; fragmentos de vidro, metais etc. Food Defense por outro lado, trata das contaminações propositais. Essas contaminações propositais podem ocorrer por várias razões como sabotagem, tentativa de extorsão ou terrorismo, sendo nesse caso não motivada por objetivo de ganho econômico. Mas poderá também ser uma fraude, que visa ganho econômico e que, dependendo da fraude, pode comprometer fortemente a inocuidade dos alimentos.

Scot Consultoria: O Brasil pode ser considerado como referência no aspecto segurança de alimentos? Se não, quais caminhos ou próximos passos devemos seguir na sua opinião para atingirmos esse patamar. 

Ellen Lopes: Há muitas empresas no Brasil exemplares na área da segurança de alimentos, tanto nacionais como multinacionais. Temos excelentes exemplos na área de exportação de produtos de origem animal e de commodities agrícolas. As empresas que exportam produtos cárneos são em geral certificadas por normas de gestão da segurança de alimentos como BRC, IFS ou outra.  Em uma visão mais macro, entendo que estamos muito atrasados, por exemplo em comparação à Portugal e Espanha, onde estive a trabalho recentemente. Lá, estudando a legislação da União Europeia, soube que, desde 2004, é exigido das empresas do setor alimentar que mantenham processos com base no APPCC/ HACCP, sistema que identifica os pontos críticos a serem controlados, valendo dizer essa legislação teve o cuidado de incluir flexibilização e simplificação para quando necessário. Pude constatar isso na prática, em Portugal, onde os restaurantes têm APPCC/ HACCP implementado. Outro exemplo prático que vi foi em visita a uma central de distribuição de insumos para restaurantes em Madrid, onde constatei que todos seus fornecedores, mesmo os de pequeno porte, eram certificados por uma norma de gestão de segurança de alimentos tipo FSSC 22000, ISO 22000, BRC ou outro equivalente.

No Brasil o APPCC/ HACCP é exigido pelo Ministério da Agricultura para produtos de origem animal que realizam o comércio interestadual e/ou internacional. Mas no caso de produtos da competência do Ministério da Saúde, o APPCC/HACCP é apenas mencionado numa portaria para a inspeção sanitária, sendo muito raramente de fato cobrado numa fiscalização. Assim, penso que para atingirmos esse patamar da União Europeia aqui no nosso país, para as empresas da esfera de fiscalização do Ministério da Saúde, seja indústria ou food service, deve haver legislação explicitando a exigência do APPCC/ HACCP para ir além das Boas Práticas de Fabricação (BPF) e dos Procedimentos Operacionais Padronizados (POPs). Claro que flexibilizando prazos e modo de adoção, principalmente para as empresas de pequeno porte.

Entendo também que adicionalmente deveria haver programas governamentais complementares para apoiar, incentivar e até financiar a evolução da Educação e Cultura de Segurança de Alimento para que efetivamente as práticas sejam mais efetiva e robustamente incorporadas como comportamentos nas rotinas.  

Scot Consultoria: Qual o possível impacto no consumo de carne bovina pensando na mudança cultural que está acontecendo, principalmente com as gerações mais novas?

Ellen Lopes: As gerações mais novas estão mais conscientes das pressões causadas ao meio ambiente pela criação extensiva de animais. Paralelamente cresce o sentimento pró bem-estar animal, direito dos animais e contra seu sacrifício. Por essas e outras razões, há uma tendência de mudança de hábitos de consumo como vegetarianismo, veganismo, flexitarianismo, Monday Meatless, dentre outras. Tais tendências resultam no consumo de menos produtos cárneos e no aumento da oferta de produtos plant-based, que está em plena expansão global.

Paralelamente há uma tendência de aumento da população mundial, com consequente aumento na demanda de carne em países onde há preferência por esse tipo de dieta. Essas grandes tendências conviverão lado a lado, e como será a exata evolução não se sabe, mas as simulações mostram que até 2025 a demanda ainda será crescente, especialmente por conta da China, devido à sua enorme população e à sua alta preferência por carne.

Scot Consultoria: Com o risco alimentar aumentando devido à guerra Rússia x Ucrânia, quais são as medidas que podem ser tomadas pelos países para diminuir esses impactos?

Ellen Lopes: No caso do Brasil ficou claro que nosso país ao longo de anos não fez várias lições de casa. Uma simples análise SWOT (pontos fortes, fraquezas, oportunidades e ameaças), ferramenta muito utilizada em planejamento estratégico de empresas, indicaria que a diminuição dos estoques reguladores governamentais era uma grande ameaça à segurança alimentar de nossa população. Uma reportagem no início deste ano apontou que “em uma década, perdemos mais de 90% destes estoques”. 

Outra ameaça óbvia foi a dependência externa de fertilizantes e as dificuldades de colocar em prática o Projeto Carnalita em Sergipe, que já teria reduzido significativamente a nossa necessidade externa de potássio. Isso sem falar do fechamento de fábricas de fertilizantes nitrogenados.

Eu não saberia analisar em outros países, mas ficou claro que essa lição de avaliação de ameaças também deve ser aprendida por muitos outros países. Isso significa ir contra o movimento de globalização? Não, até porque se analisarmos esse movimento é tão antigo quanto as viagens de circum-navegação. Mas atentando para as vantagens do globalizar sem colocar em risco a sobrevivência das suas próprias populações.

Scot Consultoria: Sabemos que a sustentabilidade é um tema com cada vez mais relevância no cenário global, como a segurança de alimentos pode correlacionar com a sustentabilidade?

Ellen Lopes: A sustentabilidade e a segurança alimentos são de certa forma complementares ou por vezes dicotômicas, sendo que uma traz desafio para a outra.

Um exemplo é a escassez de água, que já afeta, ou afetará algumas regiões. A água é muito importante para processos de limpeza. Isso tem obrigado as empresas a estudar preventivamente ou reativamente como realizar as limpezas com menor quantidade de água.

Um segundo exemplo é o desafio imposto pelo descarte de produtos ou matérias-primas rejeitadas por problemas de segurança de alimentos. Podemos citar o caso do leite, que apresentando teste positivo para antibiótico, deve ser descartado em aterros sanitários, lagoas de estabilização ou lagoas secas, gerando pressão para o meio ambiente. Nesse caso, uma forma de reduzir o descarte é auxiliar os produtores a evitarem a contaminação na originação.

Um terceiro exemplo da correlação entre sustentabilidade e segurança de alimentos é a diminuição do uso de plásticos via redução da espessura da embalagem, que gera o desafio de manter a integridade das embalagens para que não se coloque em risco a segurança de alimentos.


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