Foto: Bela Magrela
Considerada a fase mais desafiadora da bovinocultura de corte, a recria precisa ser eficiente para alcançar a rentabilidade. Para Júlio Barcellos, PhD em produção animal, a recria é a fase com as maiores oportunidades de ganhos em todo o ciclo produtivo, pois, exclusivamente nessa fase do crescimento do bovino, é possível controlar a taxa de ganho, que está diretamente ligada à alimentação, e, consequentemente, aos custos e investimentos necessários.
Esses e outros temas serão abordados por Júlio, que será um dos palestrantes presentes no Encontro de Confinamento e Recriadores, da Scot Consultoria, que ocorrerá entre os dias 8 e 11 de abril, em Ribeirão Preto e Barretos, São Paulo.
Scot Consultoria: Júlio, considerando sua trajetória com a bovinocultura de corte, poderia compartilhar um pouco sobre sua jornada? Além disso, quais projetos você tem desenvolvido atualmente na área de recria?
Júlio Barcellos: Ao completar 42 anos de formado e a maior parte deles atuando na bovinocultura de corte, acredito que vivi as grandes transformações pelas quais o setor passou no Brasil.
Nos meus desafios de enxergar um pouco adiante, saí de uma formação profissional cartesiana, onde o sujeito precisava saber muito sobre algo muito específico para um generalista atual, onde, nos últimos 15 anos, me tornei um profissional com a capacidade de enxergar o todo, o sistema de produção o sistema de produção e o mais complexo, as inter-relações de todas as principais variáveis que influenciam o resultado da atividade. Isso me fez atuar de outra forma, uma reinvenção profissional, mas também, na condição de professor de uma grande universidade, desenvolver as habilidades nos futuros profissionais que lhes permitam enxergar uma unidade produtiva ou uma fazenda de forma mais ampla. Uso sempre a analogia de que precisamos de profissionais com um olhar mais de lupa do que de microscópio. Hoje, com o drone, fica mais fácil entender: vejo a fazenda de cima e todos os seus recursos e interações. No campo dos insumos, até hoje, ainda percebemos um promotor de vendas que chega a uma fazenda querendo vender sua solução de forma muito pontual, mas sequer entende como funciona aquela fazenda, não conhece o sistema, não conhece as limitações e as potencialidades do lugar. Portanto, o Brasil precisa de pessoas mais abrangentes, com seu conhecimento mais horizontal.
Olhando para as fases da produção de carne, nossos avanços se deram basicamente na recria, fase de um ciclo muito longo, que por meio da genética e da nutrição, foi drasticamente reduzido e o ciclo produtivo saiu de dois mil dias para mil dias. Esses avanços me levaram a entender melhor o crescimento dos bovinos e a publicar o primeiro livro no Brasil sobre crescimento de bovinos de corte. Nele, explico todos esses fenômenos, mas também aproveito ensinamentos de mais de um século que sempre foram deixados de lado na avaliação animal e no desenvolvimento dos diferentes biotipos raciais. Na sequência desse processo, busquei transformar todo esse aprendizado em aplicações práticas para os pecuaristas, pois essa é a nossa finalidade. Não precisamos empilhar publicações científicas para demonstrar conhecimentos; precisamos empilhar inovações e técnicas capazes de produzir mais, de facilitar a vida das pessoas, de nos adaptarmos às constantes mudanças do ambiente.
Nos projetos que estamos à frente, surge a questão do aumento do peso à desmama e seus efeitos na terminação, tipo de ganho de peso (sua composição em tecidos), ganhos musculares, ganho compensatório e estratégias de combinação genética com nutrição.
Scot Consultoria: Quais são os maiores desafios enfrentados na fase de recria, especialmente no que diz respeito à ineficiência tecnológica?
Júlio Barcellos: A recria no Brasil, sempre foi vista de forma um pouco pejorativa, como uma etapa de baixa eficiência, geralmente desencadeada pela engorda, pelo terminador, que buscava, muitas vezes, melhorar seu resultado no confinamento a partir de um pecuarista ineficiente na recria e desejava comprar muito bem um boi magro ou garrote, cujo prejuízo ficava na conta da recria.
Os grandes desafios da recria estão marcados em dois pontos fundamentais: sair de um bezerro, atualmente com baixo peso à desmama, e produzir um crescimento e desenvolvimento do bovino – aumento de tamanho – sem depositar gordura, formando uma estrutura corporal capaz de responder em peso, rendimento e qualidade de carcaça, aos programas nutricionais da engorda. Estes desafios precisam ser superados para encurtarmos um pouco mais a recria, e isso se dará por meio de uma maior eficiência do que temos de tecnologias à disposição. Naturalmente essa visão não é igual para a recria de uma bezerra ou de um bezerro, pois os objetivos são diferentes. A novilha precisa crescer se desenvolvendo internamente. Para isso, é necessário que o seu ganho de peso diário vá “guardando” um pouco de gordura, para que no momento da puberdade, ela tenha reserva corporal que sinalize que a fêmea entre em cio. Claro que, associado a genética, mas nos biotipos zebuínos, só a palavra “precocinha”, terminologia inadequada que está sendo muito utilizada, não resolve; ela precisa de um peso qualificado, que nada mais é do que um percentual mínimo de gordura no corpo. Isso já provamos no Brasil, assim como outros pesquisadores pelo mundo.
Voltando ao que eu denomino de ineficiência tecnológica, e na recria isso é muito frequente e continua sendo um grande gargalo, exemplifico que uma suplementação a pasto no pós-desmame, por ser na época da seca, cujo suplemento permite que o bezerro tenha um aumento diário de peso de 0,5kg. Um determinado pecuarista utiliza esse suplemento e obtém o resultado esperado. No entanto, outro pecuarista, que pode ser seu vizinho de fazenda, só alcança um aumento de peso de 0,3kg. Este último tem uma ineficiência tecnológica, pois está obtendo 60,0% do potencial do insumo. No início, há mais de 20 anos, eu imaginava que os insumos vendidos no Brasil eram inferiores ao de outros países. Rodei uma série de análises e encontrei dados interessantes: em outros países, com maior eficiência de um determinado insumo, o pecuarista era o executor da tecnologia e isto fazia uma diferença enorme. Os processos sempre eram mensurados e avaliados no final da técnica, e quando o resultado era inferior, corrigiam-se os problemas. Fui avançando e desenvolvemos um modelo para predizer a eficiência e encontramos que a operacionalidade (pessoas), infraestrutura da fazenda (instalações e equipamentos), o nível de conhecimento da técnica e os riscos de não dar certo é que marcam o nível de eficiência ou ineficiência. Portanto, no Brasil, ficamos dizendo “isso funciona ou não funciona”, outros dizem: “na minha fazenda não andou”. Tudo isso compromete o uso mais disseminado das técnicas e a colheita de melhores resultados. Temos grandes oportunidades de melhorar isso na recria e colher o que é esperado.
Scot Consultoria: Como você relaciona os custos elevados na fase de recria e os investimentos necessários para contorná-los? Quais estratégias podem ser adotadas para diluir esses custos ao longo do processo e tornar a operação mais eficiente?
Júlio Barcellos: Considerar que os custos na recria são elevados é uma falácia. Claro que se o período é muito longo, e a recria representar 50,0% do tempo de vida do animal que vai para o abate, isso é uma ineficiência, aí sim o custo é alto. Mas, na realidade, o processo não é assim. Na recria, seja de machos ou fêmeas, está a janela de maiores oportunidades de ganhos em todo o ciclo produtivo, pois, unicamente nesta fase de crescimento do bovino, podemos manipular a taxa de ganho, que está associada à alimentação, portanto, custo/desembolso. Na reprodução e engorda, a manipulação do ganho de peso compromete significativamente o resultado, pois, para um boi depositar gordura na carcaça, durante sua terminação, sua taxa de ganho não pode ser inferior a 1,0kg/dia. Contudo, na recria, pós desmama, conforme o objetivo do sistema de produção, ganhos de 0,5kg ou 0,75kg/dia, não comprometem o desenvolvimento do bovino, só retardam ou aceleram o seu crescimento, que deve estar atrelado a uma meta de peso final. Essa manipulação se dá com o custo da dieta e a conversão do animal. Portanto, temos muitas possibilidades de melhorar a recria com o balanço equilibrado de alimentação e ganho de peso, obviamente, sempre atrelado ao objetivo final. Quanto mais intensivo é o sistema produtivo, essas margens de manipulação ficam muito estreitas, mas a maioria dos sistemas pecuários no Brasil é a pasto e com uma recria com duração de aproximadamente 400-600 dias, período de amplas possibilidades de gestão.
O importante em qualquer fase de produção, e na recria não é diferente, é avaliar o custo para cada unidade de produto gerado, seja a arroba, garrote ou a novilha. Assim, é preciso compreender que, durante a recria, o bezerro carrega um custo muito alto vindo da sua etapa de cria, que foram todos os gastos com pasto para a vaca, o programa sanitário, suplementação mineral e ainda a reprodução. Tudo isso leva a um valor estimado em torno de R$2.000,00/bezerro nascido, considerando 75,0% de desmama e um peso de seis arrobas na desmama. Bem, a partir deste preço, na medida em que na recria acrescentamos mais peso e chegamos no final com 10 arrobas, por exemplo, temos os R$2000,00 iniciais mais o custo da recria. Um garrote que chega com 12 arrobas tem o seu custo intrínseco, mais o principal que são os R$2000,00 até o desmame, serão diluídos agora por 12 arrobas ao invés de 10. Portanto, gastar mais na recria significa reduzir o custo final por arroba produzida. Essa é a lógica que se aplica no peso ao desmame e na recria, pois existe um custo fixo que vai sendo diluído na vida do animal e que é muito alto em relação ao custo variável. Ou seja, mesmo aumentando o custo variável, com alimentação, por exemplo, o custo final ficará menor. Na engorda, isto não é possível, pois o residual do custo fixo até o final da recria já foi muito diluído, agora é uma avaliação direta do processo. Então, o conjunto de estratégias deve ser implementadas para aumentar a velocidade de crescimento, com equilíbrio, monitorando os custos, mas que permita reduzir o custo da fase anterior, no caso a cria.
Por outro lado, é preciso entender que uma tecnologia é uma expectativa, que uma vez inserida no contexto da fazenda, dos recursos humanos, da logística e dos riscos, vai gerar resultados bons ou ruins. Para isso, a capacidade de gestão é muito maior do que o nível de conhecimento técnico, a operacionalidade é a palavra-chave. Na mesma linha, quando agricultamos a pecuária, passamos a ter uma visão muito mais voltada para tecnologias de insumos (o que eu compro nos fornecedores) do que tecnologias de processos (como eu faço). Nesse sentido, é importante um equilíbrio entre insumos e processos para que o sistema não fique tão vulnerável aos riscos do mercado e seja mais versátil em situações de conjunturas desfavoráveis.
Scot Consultoria: Como a utilização das informações da curva de crescimento animal pode contribuir para ganhos bioeconômicos na recria e no confinamento? Quais medidas podem ser implementadas para otimizar o manejo e melhorar a rentabilidade nesses estágios da produção?
Júlio Barcellos: A curva de crescimento demonstra que, na recria, é quando obtemos o melhor resultado econômico para cada unidade monetária investida (energia), pois ainda é uma das etapas em que a conversão é muito favorável. Um bezerro com seis arrobas converte mais que um com nove arrobas, e este mais que outro com 12 arrobas. Portanto, é como uma aplicação no mercado financeiro, ao passo que o animal fica mais velho, menor é o rendimento da aplicação. O exemplo típico é o do frango de corte, o abate mais cedo possível é para trabalhar na máxima conversão. Claro que, em bovinos, isso não se aplica 100,0% pois o animal não é comercializável como produto, precisando depositar gordura para estar maduro e pronto para o abate. Mas, durante a recria, utilizar este princípio é muito útil ao pecuarista.
Além desses aspectos, essa matriz construída na fase inicial de vida do animal é a base para o ganho no confinamento. Isso explica por que os ganhos nos confinamentos do Brasil são baixos e não temos observado muitos avanços, pois os ganhos na pré-desmama e na recria não originam um alicerce/matriz suficiente para retenção de músculos e tecido adiposo na engorda de forma mais eficiente. Portanto, também é importante quebrar o paradigma do terminador que só deseja comprar bezerro ou garrote leves para pagar pouco e depois ganhar na compensação da terminação. Quando tratamos de boi commodity, isso é parcialmente verdade, mas, quando a venda é no rendimento de carcaça ou para destinos mais exigentes em qualidade de carne, a oportunidade foi perdida.
Scot Consultoria: No Encontro de Confinamento e Recriadores, que ocorrerá de 8 a 11 de abril, abordaremos temas como os desafios, estratégias e as perspectivas para a recria. O que os produtores podem esperar do evento e como as palestras poderão contribuir para ajudá-los a superar esses desafios e aprimorar suas práticas?
Júlio Barcellos: O evento é um palco de exposição do conhecimento aplicado, ímpar no Brasil, dado o seu formato e amplitude de alcance. Aqueles que não dão bom dia para cavalo estarão presentes e, com a sabedoria, verticalizarão de forma prática como fazer para ganhar dinheiro, essa é a base desse encontro dos protagonismos. Compreender de forma mais sistêmica os seus negócios, certamente trará reflexões aos pecuaristas, que, ao voltar para casa, poderão mudar de comportamento. Temos certeza de que isso ocorrerá e será fruto do aprendizado desse grande encontro. Além disso, o convívio com diferentes visões sobre a pecuária pode ser um gatilho mental para mudanças de atitudes. Às vezes, essa é a principal barreira de quem frequenta eventos, entende tudo, sai feliz, mas não faz nada. Nosso desafio é criar esses gatilhos para a mudança, e faremos isso.
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Médico-veterinário, mestre e PhD em produção animal, professor titular do departamento de Zootecnia da Faculdade de Agronomia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, fundador e coordenador do grupo NESPro/UFRGS
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