No bastasse ter de enfrentar uma das piores crises que j assolaram o campo brasileiro, os produtores rurais acabam de receber uma notcia que caiu como uma verdadeira bomba. Meio na surdina, setores do governo planejam uma abrupta alterao nos rumos da reforma agrria no pas e ameaam de desapropriao uma enorme parcela dos fazendeiros. Pela idia em debate, cada grande produtor ser obrigado a atingir um ndice mnimo de produtividade quem ficar abaixo dele num nico ano corre o risco de perder a terra. Por si mesma, tal notcia j suficiente para tirar o sono de milhares de proprietrios. O mais grave, porm, que as verses que circulam em Braslia apontam que essa exigncia de produtividade poder ser draconiana. O medo que os produtores, abalados pela crise, simplesmente no tenham condies de cumprir as exigncias. Embora ainda no se conheam os detalhes, algumas estimativas mostram o fantstico potencial de problemas da medida. No caso da soja e do milho, o consultor Andr Pessoa, da Agroconsult, empresa especializada em agronegcio, estima que at 58% das lavouras fiquem abaixo da nota de corte. Nos estados mais afetados pela seca, como o Rio Grande do Sul, provvel que haja atualmente um nmero muito reduzido de produtores em condies de produzir com a eficincia exigida nas verses originais do projeto. "O clima no campo de apreenso", diz Luiz Antnio Pinazza, diretor da Associao Brasileira de Agribusiness (Abag).
A discusso sobre o ndice de produtividade foi um dos fatores que motivaram h duas semanas a sada do governo de Roberto Rodrigues, que ocupava o Ministrio da Agricultura desde a posse do presidente Lula, em 2003. Em Braslia, Rodrigues era o principal opositor da medida. Uma de suas crticas ao ndice era a de que ele fora feito com base num trabalho do Ministrio do Desenvolvimento Agrrio e do Incra, que calcularam os indicadores de produtividade de cada cultura pela produo registrada entre 1999 e 2003 perodo em que o agronegcio nacional bateu seguidos recordes. Com a crise atual, naturalmente, os produtores tm menos recursos para aplicar em insumos, como defensivos e fertilizantes. por isso que todos os especialistas j vinham trabalhando com a perspectiva de queda na produtividade do setor. Portanto, o momento no poderia ser pior para cobrar dos fazendeiros que cumpram as exigncias em termos de produo. "Alm de fixar um teto alto, o governo no leva em conta as caractersticas cclicas do setor", afirma Pessoa. " natural que a produtividade seja maior nos anos positivos e caia nos de dificuldades."
A sada de Rodrigues representou a queda de um dos ltimos defensores do agronegcio dentro do governo Lula. O anncio do nome de seu substituto deixou o setor para l de ressabiado. Quem assumiu o cargo foi o antigo secretrio executivo do ministrio, Lus Carlos Guedes Pinto. Embora fizesse parte da equipe de Rodrigues, Guedes tem ligaes histricas com os movimentos de reforma agrria. Em razo disso, os produtores acham que ele tende a ser simptico idia de facilitar a desapropriao de novas terras. Na cerimnia de posse, o novo ministro utilizou um discurso conciliatrio, dizendo que o tema ainda no est fechado. Presente na ocasio, o presidente Lula tambm fez questo de apaziguar os nimos. "Nada ser feito por agora", afirmou ele, num sinal de que a medida no ser implementada antes das eleies de outubro. O que vem depois ningum sabe.
Independentemente do desfecho do caso, o episdio j abriu uma nova crise entre os agricultores e o governo. O presidente da Sociedade Rural Brasileira, Joo de Almeida Sampaio, diz que o setor far campanha aberta contra a administrao petista caso a nova poltica seja implementada. Alguns produtores falam at em adotar uma espcie de poltica de "desespero", investindo o que puderem nas culturas, mesmo que isso resulte em mais prejuzo, apenas para atingir o ndice de produtividade a ser exigido pelo governo. "Pior do que perder dinheiro numa safra perder a terra", afirma Nelson Paludo, agricultor do interior do Paran, um dos produtores que estariam hoje ameaados de desapropriao.
O fato de haver produtores dizendo que vo jogar dinheiro fora para manter suas propriedades no o aspecto mais surreal de toda essa discusso. H outros absurdos na histria. Em primeiro lugar, o governo no tem condies de saber qual ser o impacto da medida, pois no realiza desde 1996 um censo agropecurio no Brasil. Ou seja, ningum sabe dizer se a mudana das regras liberar 100 ou 1 milho de hectares passveis de desapropriao. Alm disso, o empenho do governo d a impresso de que esto faltando terras no pas para ser distribudas da a necessidade de avanar sobre quem produz e gera riquezas. um raciocnio incorreto. Hoje existem mais de 90 milhes de terras agricultveis ociosas no Brasil. Como elas se localizam longe dos grandes centros urbanos, so propriedades desprezadas pelo MST e por outros movimentos do gnero. "Aumentar o estoque de terras para reforma agrria no o principal objetivo da medida", afirma Guilherme Cassel, ministro do Desenvolvimento Agrrio. "Queremos melhorar a performance no campo. A situao atual premia a improdutividade e impede o andamento das reformas."
As palavras de Cassel sugerem que haja no Brasil um nmero considervel de especuladores de terra, sem interesse em investir seriamente na agricultura. Ocorre exatamente o contrrio. Se h um setor eficiente na economia brasileira o agronegcio. Ele responsvel por 34% do produto interno bruto (PIB), 37% dos empregos gerados e 93% do saldo da balana comercial. Alm do mais, trata-se de um dos setores mais produtivos do pas graas a investimentos em tecnologia implementados ao longo de dcadas. Desde 1991, o pas foi capaz de dobrar a produo agrcola, apesar de a rea plantada quase no ter crescido. Em vez de investir em fatores que possam turbinar ainda mais o trabalho de quem j produz, como novas pesquisas e linhas de financiamento, o governo planeja tomar as terras para entreg-las turma dos assentamentos agrrios, que j provou ser capaz de tudo, menos de produzir com eficincia.
O interesse do governo em fixar um ndice mnimo de produtividade traz tambm outras questes importantes a ser discutidas envolvendo o conceito de direito de propriedade. Um exemplo: punir a ineficincia de um produtor com a perda de suas terras algo justo? Mal comparando, seria o mesmo que uma lei permitir a desapropriao de uma montadora de veculos que, por alguma circunstncia, opera apenas em dois turnos e no nos trs de sua capacidade total. Em todos os demais setores da economia, fica a cargo do mercado definir quem so os produtores que merecem permanecer em operao e quais sero deslocados. Ou seja, numa economia de mercado normal que os mais competentes prevaleam. No caso do universo do campo, a noo que abre espao para que se rasgue o direito de propriedade a chamada "funo social da terra", conforme fixa o artigo 184 da Constituio Federal. Na viso maniquesta dos congressistas que escreveram a Carta de 1988, s o fato de algum ter uma grande propriedade j o coloca do lado dos viles. A realidade outra. "O modelo distributivista de terras, que o governo atual insiste em adotar, no deu certo em lugar algum do mundo", afirma Xico Graziano, deputado federal do PSDB e ex-presidente do Incra. "Para ser eficiente, a atividade agrcola exige hoje muitos investimentos e uma grande infra-estrutura, condies difceis de ser preenchidas nos assentamentos. Por isso, muitos deles viram, em geral, favelas rurais."
Cabe aqui, portanto, uma questo fundamental: quem est cumprindo melhor sua funo social, os produtores que respondem por um tero do PIB brasileiro ou os ineficientes assentamentos rurais? Os fatos mostram que a resposta bastante bvia. Mais do que isso, o resultado da discusso sobre o ndice de produtividade pode definir a vocao brasileira nos assuntos do campo de uma vez por todas. Em ltima instncia, est em jogo se o pas vai continuar na vanguarda do agronegcio com fazendas eficientes e capazes de gerar milhes de empregos diretos e indiretos ou se vai jogar fora essas conquistas e, em troca, transformar o pas num imenso favelo rural.
SEIBEL, F. O Governo quer tomas as terras deles.
Revista Exame.
<< Notícia Anterior
Próxima Notícia >>