O governo boliviano prepara mais um desaforo ao Brasil: planeja propor moratória de cinco anos para todos os programas de expansão de etanol, segundo disse ao Estado, em Genebra, o relator especial da ONU sobre o Direito à Alimentação, o suíço Jean Ziegler. Se a ameaça se materializar, o governo brasileiro terá de mobilizar seus diplomatas para cuidar de mais um problema causado por um vizinho. A agenda de acertos na vizinhança poderá ficar complicada nas próximas semanas. O governo argentino planeja convencer os parceiros do Mercosul a seguir seu exemplo, tributando as exportações agrícolas. Se ainda tiverem algum juízo, as autoridades brasileiras deverão rejeitar a proposta, que só pode interessar aos próprios argentinos.
O governo brasileiro tem parte da responsabilidade por esses problemas, pois tem sido incapaz de afirmar os interesses legítimos do Brasil diante de seus vizinhos e de outros “aliados estratégicos”. A campanha contra o etanol começou, há meses, por iniciativa de Fidel Castro, logo seguido pelo presidente venezuelano, Hugo Chávez, e pelo boliviano Evo Morales.
O movimento contra o etanol foi lançado antes do próprio Ziegler apresentar, no mês passado, a idéia da moratória. Segundo o relator da ONU, a produção de biocombustíveis prejudicará a oferta de alimentos e será desastrosa para as populações mais pobres. Governo e produtores brasileiros contestaram os estudos mencionados por Ziegler e deixaram clara a diferença entre o uso da cana, adotado no Brasil, e o de milho, nos Estados Unidos. Mas a argumentação racional é pouco eficiente contra teses sustentadas com paixão e demagogia.
Ao propor a moratória, o governo boliviano tentará interferir numa decisão econômica - a de produzir etanol - de alçada exclusiva dos brasileiros. Quando o presidente Evo Morales mandou tropas do Exército contra instalações da Petrobrás, autoridades brasileiras defenderam seu gesto como um ato soberano. Nem sequer atentaram para a diferença entre violação de soberania e o mero rompimento de contratos. Serão capazes de reagir com a mesma ênfase, quando e se as autoridades de outro país tentarem regular a pauta brasileira de produção agrícola?
Além do mais, a tese da moratória, lançada há quase dois meses por Ziegler, envolve implicitamente uma tentativa de responsabilizar o Brasil pelas condições de abastecimento nos países mais pobres. O Brasil pode exportar alimentos para esses países. Pode fazer doações, em certas circunstâncias. Mas não tem sentido condicionar sua política agrícola aos interesses de quaisquer países.
Se há fome em regiões da África não é por culpa do Brasil. Organismos internacionais, como a própria ONU e o Banco Mundial, foram incapazes de promover o desenvolvimento da agricultura nessas áreas e o problema ainda foi agravado pelos subsídios concedidos a produtores do mundo rico. A análise de Ziegler está obviamente desfocada.
Quanto à idéia argentina de taxação das exportações agrícolas, é inteiramente inaceitável do ponto de vista brasileiro. O governo de Buenos Aires decidiu tributar os produtos agrícolas vendidos ao exterior por dois motivos - para reforçar o Tesouro, em situação precária há muitos anos, e para regular o abastecimento interno e conter a inflação. Com a alta das cotações no mercado internacional, a taxação foi absorvida mais facilmente pelos produtores.
Seria uma enorme insensatez, no entanto, adotar uma política semelhante no Brasil. Isso apenas tornaria os produtos brasileiros menos competitivos. Mas há quem defenda essa tolice, como forma de reduzir o superávit comercial. Os concorrentes dos produtores brasileiros ficariam muito gratos.
O governo argentino deve apresentar a sugestão na próxima reunião de cúpula do Mercosul, em dezembro. No mesmo encontro, o governo brasileiro poderá cobrar a eliminação de barreiras impostas nos últimos anos a vários produtos brasileiros - como geladeiras, calçados e tecidos para jeans. Se as autoridades brasileiras quiserem mesmo conversar em termos razoáveis sobre esses assuntos, devem aproveitar a oportunidade. Será muito mais difícil quando o presidente Hugo Chávez participar plenamente das deliberações do Mercosul, como defendem os estrategistas do Planalto.
Fonte:
O Estado de São Paulo. Editorial. 23 de novembro de 2007.
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