Imaginem a seguinte cena: Lula, embevecido, fotografando Pinochet. O ditador, sorridente, apreciando aquela atitude de um amigo de longa data, que o faz retratar, para a história, em diferentes perspectivas. O fotógrafo-presidente, transbordando de emoção, chega a afirmar que “ele está pronto para assumir o papel que tem (no Chile) e na história”. Qual seria o seu papel? Certamente seria o de um ditador sanguinário que não mediu meios para exercer o seu poder e eliminar as diferentes formas de oposição. Suas ações constituíram um flagrante desrespeito aos direitos humanos, entendidos universalmente, e não particular e setorialmente, como é o caso hoje no Brasil. O seu papel seria também o de ter montado um governo imune às vicissitudes democráticas e ávido, hoje se sabe, de seu próprio enriquecimento, a expensas dos recursos públicos.
A cena, que pode parecer inverossímil, é, no entanto, extremamente veraz. A troca de personagens, Fidel por Pinochet, mostra apenas a afinidade entre dois ditadores. Mais do que isso, ela mostra também, do ponto de vista dos princípios, a afinidade entre duas concepções políticas, a comunista e a nazi-fascista, que se concretizaram em duas conhecidas formas de totalitarismo no século 20. Os dois ditadores são rebentos de formas de poder que se traduziram pela eliminação física de milhões de pessoas, em maneiras de perversão da natureza humana que, até hoje, assombram os que se debruçam sobre os fatos. Os seqüestros das Farc e a narcoguerrilha se situam igualmente nessa mesma linha de filiação, naquilo que Hugo Chávez, com outras palavras, chama de “concepção bolivariana”. Alguns não aprendem com a História, pois sua visão continua enraizada na irracionalidade de crenças imunes a qualquer questionamento.
O problema ganha maior alcance porque a atitude de Lula não é somente individual, mas expressa a concepção de toda uma esquerda que se encanta ainda com a experiência totalitária, embora procure apresentá-la sob o manto da justiça social, do socialismo, da solidariedade, da utopia ou que nome se queira dar a tal deturpação dos fatos. O nazismo tornou-se um nome feio, algo que deve ser evitado, com razão, a todo custo. Há leis que proíbem, inclusive, publicações que façam a sua defesa, por evidentes questões de preconceito racial e pela violência explícita contida em sua concepção. A experiência comunista e socialista em geral, no entanto, é apresentada como uma obra de redenção da humanidade, tendo cometido erros que seriam, porém, sanáveis. Meros erros de percurso.
Seria interessante perguntar aos milhões de mortos, se isso fosse possível, dos campos de concentração e extermínio da União Soviética, da China maoísta, o que significou para eles a redenção da humanidade e a concretização da “utopia”. Seria interessante perguntar à metade da população do Camboja que foi literalmente exterminada pelos Khmers Vermelhos, que chamavam seus assassinatos coletivos de obras de reeducação dos seus “cidadãos”. Seria importante interrogar os que padecem a “humanidade” nas masmorras de Fidel e os familiares dos que foram por ele e por seus “companheiros” eliminados. Seria longa a lista de todos os feitos dos redentores da humanidade, que, no entanto, sempre tiveram ao seu lado intelectuais que defendiam as suas posições, tudo atribuindo a falsidades construídas pelo “imperialismo”, hoje “neoliberalismo”. Quando os fatos romperam as barragens ideológicas, os honestos abdicaram de suas convicções, os papagaios de pirata, contudo, continuaram repetindo e defendendo as mesmas formulações, com o uso das mesmas artimanhas, sempre em nome da “solidariedade social”.
O Brasil apresenta um déficit de idéias, talvez o mais importante dos seus déficits, que o impede de progredir, pois idéias anacrônicas e atrasadas continuam pautando boa parte de suas decisões. Uma comissão governamental, em nome de uma luta “histórica”, ascende, por exemplo, Lamarca, um comunista-socialista, assassino frio, ao cargo retroativo de general, com os proventos correspondentes. Che Guevara é um ícone da esquerda e dos movimentos ditos sociais em geral. Comunistas como Niemeyer são louvados em suas idéias. Se tivesse chegado ao poder, teria sido obrigado a construir moradias padronizadas, verdadeiros caixões, que até hoje “embelezam” aqueles países. A sorte de Niemeyer foi não ter sido arquiteto num país comunista. Nunca se teria ouvido falar dele.
Os que lutaram por implantar o totalitarismo no País, no período dito de guerrilha no regime militar, são agora, ao completo arrepio dos fatos, apresentados como “democratas”, como se em algum momento seu objetivo tivesse sido a democracia. O que os diferenciava era apenas o tipo de totalitarismo, se na linha soviética, maoísta, albanesa, castrista ou outra. Que sejam hoje apresentados como heróis, com direito a recompensas, exibe somente o atraso e - diria - a má-fé desta esquerda, que continua idolatrando os que tantos prejuízos causaram à humanidade, aos direitos humanos em sua verdadeira acepção.
Não é, portanto, casual nem acidental a postura alegre de Lula ao fotografar o também satisfeito ditador cubano. Suas trocas de amabilidades e de cortesia são símbolos de um grande problema brasileiro não resolvido, o de como tratar a experiência totalitária do século 20. A foto de Lula com Fidel, dita para a posteridade, deveria fazer parte, parafraseando Borges, de uma história universal da infâmia. Ela deveria escandalizar. Nosso presidente, no entanto, não fez por menos. Considerou que o papel desse rebento da democracia totalitária deve ser situado na perspectiva de toda a humanidade. Confusão atroz de idéias que mostra uma incompreensão e uma cegueira brutais em relação aos irmãos gêmeos que são os totalitarismos de “esquerda” e de “direita”. É a falência mesma de todo esse setor da esquerda!
Fonte:
O Estado de S. Paulo. Espaço Aberto. Por Denis Lerrer Rosenfield*. 21 de janeiro de 2008.
*Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na UFRGS.
E-mail: denisrosenfield@terra.com.br
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