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Abuso legal


Segunda-feira, 16 de janeiro de 2012 - 14h45

Em histórica sessão, foi realizado em 2008 o julgamento do caso da Raposa-Serra do Sol, tendo como grande novidade as diretrizes estabelecidas pelo então ministro Menezes Direito, do STF. Trata-se de um julgamento que elaborou diretrizes que deveriam ser seguidas pelos diferentes órgãos e entidades do Estado brasileiro, obrigando-os mesmo a uma revisão dos processos em curso de identificação e demarcação de terras indígenas. Em decorrência, movimentos sociais e ONGs deveriam seguir em suas ações o que foi estipulado pela Suprema Corte. Dentre essas diretrizes, cabe assinalar duas que merecem especial destaque: a que estabelece o fato antropológico de ocupação efetiva de indígenas quando da promulgação da Constituição de 1988 e a que proíbe a revisão de limites das demarcações de terras já realizadas, por óbvio, segundo os critérios da época em que foram feitas. No que diz respeito à primeira, passa a contar a presença efetiva de indígenas nas terras a serem identificadas e demarcadas, o que implica dizer que a consideração de terras tradicionais deve levar em conta a ocupação de fato, e não traços históricos como cemitérios, por exemplo. No que concerne à segunda, estão proibidas as ampliações de terras indígenas. No momento em que uma terra foi considerada como indígena, seus limites também passaram a ser considerados como não indígenas, estabelecendo a segurança jurídica para ambas as partes. Explosões demográficas configuram um problema social que deveria ser equacionado em sua seara própria, e não via violação dos direitos já consagrados. E o que fez a Funai, entretanto? Passados três anos, não normatizou a decisão do Supremo Tribunal. Isso mesmo! Um órgão do Estado segue em seus processos de identificação e demarcação, como se o STF nada tivesse decidido. Não se pode alegar, evidentemente, falta de tempo! Ocorre uma burla à lei. No que toca à ampliação de terras indígenas, esse órgão do Estado está produzindo o argumento de que as já existentes não são propriamente ditas fruto de identificações e demarcações, por não obedecerem aos novos critérios estabelecidos pela própria Funai. Ou seja, ela continua a legislar por atos administrativos, não seguindo, reitero, as orientações do STF. Estamos, na verdade, diante de uma hermenêutica ideológica de identificações e demarcações de terras indígenas. Observe-se que há 110 milhões de hectares de terras indígenas já demarcadas e homologadas no Brasil, algo em torno de 13,5% do território nacional, para uma população global, segundo diferentes estimativas (inclusive da Funai e de ONGs como o Instituto Socioambiental), entre 450 mil e 550 mil pessoas. Enquanto a Funai não normatiza as decisões do Supremo, o que já foi solicitado pela Advocacia-Geral da União (AGU), os processos de identificação e demarcação, novos e em curso, seguem seu próprio ritmo. Casos de ampliação de terras indígenas, como em Barra Velha, e de novas demarcações, como em Cahy-Pequi, no sul da Bahia, continuam em processo, atingindo direitos há décadas assegurados. No primeiro caso, isso afeta basicamente pequenos e médios empreendedores rurais e, no segundo, assentamentos da reforma agrária, sobretudo representados pela Fetraf/CUT. Os conflitos só se estão exacerbando, em flagrante desrespeito às orientações estabelecidas pelo STF. Assinale-se ainda, no caso do sul da Bahia, que a própria AGU tem um parecer postulando que as normas do Supremo devem ser seguidas, o que até hoje não foi feito. Caso semelhante de ampliação ocorre no sul de Mato Grosso do Sul, lugar emblemático de conflitos acirrados, que só se estão perpetuando, com evidentes prejuízos para indígenas e produtores rurais. Ninguém sai ganhando, salvo os que incentivam as disputas. A região de Dourados tem aparecido como símbolo desses conflitos, sendo um caso basicamente social de explosão demográfica, a ser equacionado mediante políticas públicas de moradia, educação, trabalho e saúde. Processos novos de identificação, como nos municípios de Gentil, Marau, Mato Castelhano e Ciríaco, no Rio Grande do Sul, ou em oito municípios paulistas mostram, por sua vez, como tampouco é obedecida a determinação do STF de ocupação efetiva quando da Carta Magna de 88. A alegação de que nesses casos se trata de estudos preparatórios e de formação de grupos de trabalho é um véu para enganar incautos, porque, posta a máquina administrativo-antropológica em funcionamento, o resultado está determinado de antemão. Os antropólogos dizem textualmente que sua função não consiste em contrariar os interesses “indígenas”, não trabalhando, salvo raras exceções, para os empreendedores rurais. Há até um dito “código de ética” para disciplinar tais atividades. O “laudo”, portanto, será sempre favorável aos indígenas, estando os atingidos por essas medidas numa espécie de beco sem saída. Na situação atual, os conflitos só tendem a se reproduzir, com as partes em litígio buscando seus direitos na Justiça. Logo, sendo assim, não há solução à vista, os processos judiciais prolongando-se indefinidamente. Se há conflito de direitos entre indígenas e empreendedores rurais, a resolução dessa questão se daria com a compra de terras pelo governo, a preço de mercado, terra nua e benfeitorias, garantindo às distintas partes bem-estar e segurança jurídica. O que é perfeitamente possível, há legislação para tal. Basta vontade política. Enquanto isso não ocorrer, pessoas morrerão e serão feridas em ambos os lados, ninguém ganhando com isso, salvo os que pretendem continuar uma guerra que tem tudo de ideológica e nada do bom senso de um equacionamento técnico do problema. Portarias existentes deveriam ser suspensas ou revogadas enquanto a necessária normatização da decisão do STF não for feita. É o Estado de Direito que está em questão. Fonte: O Estado de São Paulo. Denis Lerrer Rosenfield, professor de Filosofia na UFRGS. E-mail: denisrosenfield@terra.com.br.
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